Porque segredava Gaspar ao ministro alemão Schäuble? Porque precisou depois de negar a evidência do que disse, ao passo que o ministro alemão a negava de outra forma? Porque ficámos com a sensação de que naquela conversa-de-pé-de-orelha se discutiam coisas com mais importância e substância do que nas reuniões formais dos parlamentos e das cimeiras?
Resposta: porque a política na União Europeia assenta num vazio. Três vazios, aliás: de linguagem, de representação e de eficácia.
O governo da União Europeia não se chama governo, mas Comissão. A União Europeia tem leis, que têm força de lei, se aplicam como lei, e até têm precedência sobre as leis nacionais; todavia, não se chamam leis, mas sim diretivas e regulamentos. Essas leis são feitas num processo de “co-decisão” entre duas câmaras, mas há um problema: a União Europeia não tem duas câmaras. Tem uma câmara de deputados, que é o Parlamento Europeu, mas que não pode iniciar lei (nem decidir onde reunir-se). Mas não tem um Senado; e, mesmo que o Conselho fosse um senado, porque nele estão representados os estados da União, onde estão os senadores? Precisaríamos deles, se a União Europeia fosse uma federação; ora, a União Europeia não é — e talvez não venha a ser — um estado federal, nem sequer é — e será que virá a ser algum dia — uma federação de estados.
Chegados a este ponto, os europeus desistem de tentar entender a União Europeia. Viram-se então para os seus governos, as suas leis, e os seus estados. Mas há um problema, precisamente o problema contrário do que vimos antes. Nos nossos países, o governo chama-se efetivamente governo, mas já não governa. A lei chama-se lei, mas já não faz lei. E o estado também ainda tem o nome, mas já não é bem aquilo que era.
Para encher este vazio, os governos entopem as televisões com palavras. Mas quando têm algo de importante para dizer, segredam apenas entre si.
Para muita gente, um problema de linguagem é a desculpa perfeita para todas as ocultações e todas as fraudes. “Não há nada de errado com esta Europa”, dizem (ou com este governo, ou esta lei), “é só um problema de linguagem”. Esta é a desculpa perfeita para deixar as pessoas de fora; se elas não entendem, talvez a culpa seja delas.
Mas um problema de linguagem nunca é só um problema de linguagem. É um problema de poder: de abuso de poder primeiro e, em consequência, de perda de legitimidade do poder.
O problema de linguagem da União Europeia, por exemplo, serve propósitos a toda a gente. De cada cimeira histórica para salvar o euro mais palavras saem estropiadas dos seus significados: “solidariedade” e “crescimento” são apenas as mais recentes. Depois de esvaziadas, os chefes de governo podem recheá-las com as suas conveniências. “Governo económico”, dito pela boca de um Presidente francês, quer dizer que a União vai ter uma política industrial; dito por uma chanceler alemã, quer dizer que os gastadores vão ser postos na ordem. Na verdade, não quer dizer nenhuma das duas coisas.
E em cada um dos 27 países, dependendo do grau de desespero ou dos limites da paciência, haverá uma conferência de imprensa em que a última palavra da moda será retorcida até significar aquilo que os governos precisam que signifique.
A prazo, contudo, este jogo insincero contamina todo o discurso público e acaba por infectar a sociedade. O “problema de linguagem” na União Europeia não é exclusivo a ela. Mas na Europa há muito tempo que deixou de ser um mero sintoma para passar a ser uma doença fatal.