Salvé, Vasco Graça Moura, insigne auctor que desafiaste o dictame do governo e reintroduziste a escripta antiga no teu Feudo Cultural de Belém! Povo português, imitai o exemplo deste Aristides Sousa Mendes das consoantes mudas, como lhe chamou o escriptor e traductor Jorge Palinhos. Salvai as sanctas letrinhas ameaçadas pela sanha accordatária.

Mas ficai alerta, portugueses! As consoantes mudas são muitas mais do que julgais! O “c” de actual e o “p” de óptimo são apenas os últimos sobreviventes de um extermínio secular que lhes moveram os medonhos modernizadores da escripta. Há que salvar agora estas pobres victimas, até à septima geração.

Acolhei-as pois a todas, portugueses, recolhei-as agora em vossos escriptos como a inocentes ameaçados por Herodes. Se há uma consoante muda a salvar em factura, há outra em sanctidade, e esta ainda mais sancta do que aquela. O Espírito Sancto tem uma. Maria Magdalena tem outra. E Jesus Cristo? Ora! O fructo do vosso ventre, Maria, já tinha consoante muda mesmo antes de nascer. Não sabíeis? Assim Ele se conformou, e nós nos inconformaremos.
Há quem diga que o accordo ortográfico é um tractado internacional que foi já transcripto para as nossas directivas internas. Dizem que o assumpto morreu.
Balelas! Nada nem ninguém nos obrigará a cumprir obrigações internacionais. Vasco Graça Moura mostra o caminho, e eu — peccador que fui — vejo agora a luz. Depois da summa missão de salvar as consoantes mudas que resistem, e ressusciptar as que foram suppliciadas no passado, há que supplementar este grande desígnio com outras acções.

O conductor da ambulância que leva doentes oncológicos a serem tractados, pode desobedecer ao corte de subsídios de transporte fazendo o serviço gratuitamente O quê, a austeridade, a troika? Balelas! O memorando não passa de um simples accordo internacional que o governo quer implementar. Se Graça Moura faz lei, de graça poderão também entrar os passageiros nos transportes públicos. E se o seu chefe for um republicano e patriota daqueles que não se contenta com andar com a bandeira num pin da lapela? Pois decrete que o fim dos feriados não vale lá na repartição. E o paginador do Diário da República pode rasurar as nomeações partidárias e alguns zeros dos salários de administrador, para dar espaço às consoantes mudas. O governo entenderá.

Néscio António Mega Ferreira que, apesar da sua gestão impeccável, foi demitido. Nada lhe succederia se, em vez de padecer de “falta de sintonia política”, tivesse antes violado um accordo internacional que o governo decidira fazer entrar em vigor meras semanas antes.

Insensato Pedro Rosa Mendes, que foi censurado por contrariar o governo de Angola. Se contrariasse a CPLP inteira, ainda tinha crónica, e applauso da imprensa!

Longe vai Diogo Infante, demitido por não ter dinheiro para fazer teatro no Teatro Nacional. Mas João Motta, que o substituiu, pode agora imitar a Nova Estrela de Belém. Mande as restricções às malvas, gaste o que tiver a gastar, desde que mande os actores pronunciar as consoantes que agora já não são mudas mas mártires, e que nunca mais se calarão, e que orgulhosamente transformaremos em oclusivas, fricativas ou até explosivas, se nos der na bolha, numa aKção aFFirmativa e peremPtória!

Está assim lançado um movimento que fará os gregos corar de vergonha e os alemães tremerem das pernas. Vamos dar voz às consoantes sem voz! E depois, quem sabe, aos portugueses sem voz, sem trabalho e sem futuro.

22 thoughts to “A voz das consoantes sem voz

  • Exilado no Mundo

    Adorei! Parabéns pela excelente crónica!

  • João Leal

    Bravo!
    Tiro-lhe o chapéu. Belo texto.

  • Bic Laranja

    Bom esforço. Christo é com X grego.
    Continue que passarei a lê-lo.
    Cumpts.

  • Miguel

    Parabéns pela piada que tem o texto. Está realmente bom 🙂

  • Artur Silva

    Acho este texto “engraçadinho”, mas lamentável. O que esperaria que uma personagem tão “independente” fizesse era que reconhecesse e explicasse que:
    1) Num país onde o legislador legisla por tudo e por nada, mesmo sobre matérias em que não devia legislar, muitas vezes com leis contraditórias, e que, também por isso, tem o maior número de advogados per capita, e a maior lentidão da justiça da Europa, e onde quem quer que tem (ou pensa que tem) um bocadinho de poder ou visibilidade logo pretende impor as suas opiniões a todos os que domina ou influencia, a atitude de Vasco Graça Moura de impor aos seus subordinados uma certa grafia é em tudo semelhante à atitude do governo (o anterior, por acaso) de impor a todos os portugueses (incluindo às gerações futuras) uma certa grafia – ambas reflectem uma postura autoritária e abusiva;
    2) Que essa atitude é semelhante à de assumir em nome de todos os portugueses dívidas a serem pagas em dezenas de anos, que potenciaram a crise actual e comprometem as gerações futuras.

    Ora acontece que:
    1) A língua sempre teve (e tem) um desenvolvimento orgânico, devendo evitar-se que sobre ela haja decisões que apenas relevam de considerações políticas;
    2) Que ninguém viu, nem verá, países que se respeitam, como a Inglaterra ou a França (para dar só dois exemplos), a fazer “acordos linguísticos” com os outros países ou regiões que falam tais línguas – esses países têm auto-respeito por si e pela sua língua que o típico provincianismo português, que este “acordo” tão bem revela, não tem;
    3) Que este “acordo” foi “vendido” aos portugueses com argumentos falsos: uns de carácter normalizador, quando todos podemos viver muito bem com a diversidade e, aliás, continuaremos a viver; outros de carácter economicista, na esperança de abrir o livro português ao mercado brasileiro, o que não acontecerá, pois as diferenças lexicais e sintácticas o impedem (como aliás, as da língua falada impedem os filmes portugueses de serem exibidos ao grande público no Brasil, sem serem legendados);
    4) Com o acordo, os leitores do “português de Portugal” continuarão a ser exactamente os que já eram, mas agora deixando de ter uma referência clara, que os mais cultos académicos brasileiros sempre respeitaram, aliás.

    Neste contexto a posição da Faculdade de Letras de Lisboa, hoje noticiada no Público online, parece bem mais sensata (destaques meus):
    “A Faculdade de Letras de Lisboa não tem uma política de ortografia, não tomou posição política sobre a questão do acordo. Neste momento nem impede, nem se opõe a que qualquer pessoa na faculdade, seja docente, não docente ou aluno escreva com a grafia que entender”, disse ao PÚBLICO o director da Faculdade de Letras, António Feijó.

  • Teté

    Adorei o texto! 🙂

    Gostaria de saber se me permeite fazer link dele para o meu blogue!

    Obrigada!

  • Teresa Vieira

    A piada do texto para mim é cair no ridículo! O Rui Tavares limita-se a brincar de forma algo forçada com as palavras sem apresentar um único argumento que sustente a adopção do AO90 em Portugal.
    O assunto, que se não lhe interessa particularmente a si interessa a muitos portugueses, merece uma abordagem mais séria e as pessoas que têm atitudes coerentes com as ideias que defendem merecem mais respeito. Nada disto eu encontro na sua crónica. Lamentável.

  • José

    BBem scripto…

    Com a aprovação deste novo acordo ressaltam três verdades muito evidentes:
    Primeira. O português europeu não possui norma fonética (ortoépica), logo é difícil assentar a norma gráfica numa pronúncia que é variável. Não poucas vezes confunde-se o padrão de influência com o padrão dos media sedeado em Lisboa (não confundir com a norma culta). Assim acorda-se a primazia do “critério fonético (ou da pronúncia) com um certo detrimento para o critério etimológico”, prevendo-se a grafia dupla ou a dupla acentuação gráfica: Este princípio tornou-se arriscado, pois no mesmo país, na mesma região, na mesma localidade, na mesma escola, uma mesma palavra pode ser grafada de maneiras diferentes. Imaginem-se as dificuldades e até as angústias de quem ensina ortografia. Nesse sentido, o “Plano de ação de Brasília para a Promoção, a Difusão e a Projeção da Língua Portuguesa”, do passado mês de Abril, fruto da reunião dos signatários do Acordo, clarificou a sua aplicação ao assumir que num mesmo estado deve prevalecer uma mesma grafia.

    Segunda. A ortografia e a língua não se confundem. Por isso, as mudanças na ortografia não são transferidas directamente para a língua. O Acordo Ortográfico não é uma concordância de unificação da ortografia. É necessário compreender que surge essencialmente para beneficiar a diplomacia, pois tornava-se incompreensível que a assinatura de acordos internacionais necessitasse de dois registos diferentes, numa denominada mesma língua. Descansem os alarmistas, pois continuarão a falar do mesmo modo. O Acordo Ortográfico apenas estabelece normas ortográficas, isto é muda a grafia de certos vocábulos. Não introduz uma completa uniformização na grafia das palavras, mas naturalmente a redução ao mínimo possível das diferenças. Não altera a pronúncia de qualquer palavra, não cria nem elimina palavras, não estabelece regras de sintaxe, não interfere com a coexistência ou com as regras de normas linguísticas regionais.

    Terceira. Durante a aprendizagem de uma língua, o papel da memória e da repetição são fundamentais e reconhecemos as palavras como imagens. Conclui-se, o que nos parece difícil e até aberrante dada a gravação mental gráfica, para as crianças em fase de aprendizagem, não o é. As alterações, que afectam sobretudo o desaparecimento das consoantes mudas ou não articuladas, simplificam o sistema de acentuação gráfica e a hifenização, tornam óbvia a maior facilidade de aprendizagem da ortografia.

    Escrevam como quiserem… Mais tarde ou mais cedo a nova norma impor-se-á e ficarão apenas alguns fósseis sem qualquer nota digna, a história mostra-o…

  • antónio pedro pereira

    Rui:
    Não vou fazer considerações ao seu texto pelo facto de o terreno para o qual deslocou a discussão não me interessar minimamente.
    Aliás, essa é uma pecha portuguesa antiga, argumenta-se fora do tema em discussão, arquitecta-se uma argumentação (quantas vezes não se fazem os mais descabelados ataques «ad homine»), às tantas carreiam-se argumentos tão longe do assunto que já não sabemos do que falamos.
    Gostaria apenas que desse a sua opinião sobre estes 10 exemplos de «uniformização» da Língua:

    1-º – Egito e egípcios (na 1.ª palavra o p, como não se lia, deixou de se escrever [antes do acordo escrevia-se Egipto]; na 2.ª palavra o p surge do nada, pois Egito devia gerar egitos e não egípcios.
    2.º – Cor-de-rosa e água-de-colónia escrevem-se com hífen por causa da consagração pelo uso;
    3.º – Cor de laranja e fim de semana escrevem-se sem hífen, apenas porque… não.
    4.º – Para (verbo) perde o acento ficando igual a para.
    5.º – Pôr (verbo) mantém o acento para se distinguir de por (preposição).
    6.º – Pode (pretérito perfeito) leva «obrigatoriamente» acento (pôde) para se distinguir de pode (presente do indicativo);
    7.º – Demos (presente do conjuntivo) leva «facultativamente» acento (dêmos / demos) para se distinguir / se confundir com demos (pretérito perfeito);
    8.º – Há várias formas simples com 4 grafias correctas: confeccionámos – confecionámos – confeccionamos – confecionamos;
    9.º – Rua de Santo António: passa a ter 8 formas gráficas correctas;
    10.º – Há um cabeçalho de uma carta (exemplo extremo de variação gráfica permitida) que tem 16.384 formas correctas para ser escrito.
    Eu disse 16.384, não é engano. Posso mostrar o exemplo.

  • Pedro Lérias

    Comparar consoantes mudas a judeus perseguidos pelo nazismo é profundamente errado. Atrai escárnio para os judeus, dando a entender que não eram dignos de ser salvos assim como as consoantes mudas, na sua opinião, não são dignas de serem salvas.

    À certos tiques que deve combater. A banalização do horror do holocausto que aqui ensaia é um deles. Mesmo que as palavras não sejam suas, repete-as, num texto de escárnio. Há um anti-semitismo inerente a isto. Era importante que pensasse sobre essa questão.

  • Pedro Lérias

    Da minha parte, escreve há como à é um tique a combater. Mas percebe o que quero dizer.

  • João Peneda

    O que o Artur Silva diz, eu julgo toda a gente sabe e compreende, só que há alguns que fingem não saber. Ou por provincianismo bacoco ou por interesses obscuros e inconfessáveis.

  • Pedro Silva

    Artur: 1. a “orgânica” da língua é que ditou o fim das consoantes mudas ao… torná-las mudas. Temos outros recursos para fazer marcação, como o contexto ou a pontuação. 2. Lá vamos nós outra vez aos países respeitadores e aos não respeitadores. A título de informação: a última revisão ortográfica do espanhol data da década de 1990 e incorpora, por exemplo, alterações gráficas na formação de ditongos (ou seja, vai muito além da nossa revisão ortográfica da língua portuguesa); mas houve reformas no século XIX e (veja lá o meu caro amigo!) em novembro de 2010 foi aprovada uma nova reforma ortográfica que entrará em vigor em todos os países hispanofalantes muito em breve. A língua francesa, também na década de 90 do século XX, entrou em processo de reforma ortográfica; Em 2004 a mesma era aprovada por França, Bélgica e pela região do Quebec. As alterações propostas, inscritas no novo “Larousse”, implicam mudança da grafia de cerca de 3% dos vocábulos, contra os menos de 2% a que a reforma ortográfica nacional obriga. A língua alemã viu acordo ortográfico em 1996 e em 2003 começaram a surgir vozes para uma “reforma da reforma”; Alemanha e Áustria estão de acordo e a Suiça está prestes a juntar-se-lhes. A língua holandesa teve acordo ortográfico em 1995/1996 (Holanda e Bélgica). Quer mais? Olhe, a do chinês “mainstream” foi em 1982. A do norueguês, em 2005. A do malaio indonésio (por aproximação ao malaio da Malásia), a do grego, a do japonês e as reformas ortográficas da maioria das línguas eslavas… Vou deixar para o meu amigo se entreter amanhã na biblioteca da Faculdade de Letras mais próxima da casa de V. Ex.ª. Entretanto, bom serão.

  • Hugo Jorge

    Sublime! parabéns e continue o bom trabalho

  • joão viegas

    Delicioso.

    E’ exactamente isso. Falta talvez acrescentar que o acordo é um crime de lesa majestade para a nossa “elite” a dois importantes titulos :

    – Sugere que uma reforma possa ser implementada na pratica, quando todos sabemos que é pecado passar do reino das ideias debatidas de catedra para a cloaca da realidade social ;

    – Assenta na crença perigosa de que pode ser possivel modificar comportamentos, lentamente, mas de forma inexoravel, no sentido do ajavardamento popularucho da ordem natural das coisas ; se deixarmos acreditar uma ideia tão perigosa, amanha o povo esta a exigir que o deixem respirar, quiça viver mesmo !

    Boas

  • Paula Coelho

    Triste (des)graça!
    Não tenho, por princípio, nada contra uma reforma ortográfica. Mas uma reforma que tem como único objectivo um acordo com o Brasil onde os filmes portugueses são legendados, em português do Brasil evidentemente, e assim vão continuar, uma vez que o acordo tem tantos desacordos que persistem duas grafias, francamente. E isto para nos “armarmos em amigos” do Brasil, ou melhor, das editoras brasileiras que poderão agora destruir a ideia das nossas editoras vingarem no mercado dos PALOP.
    Mas o que me move é esta reforma não ter pés nem cabeça. Infelizes dos professores que vão ter que dizer aos seus alunos: escreve-se assim, porque sim!

  • Pedro Lérias

    Aqui vai nova tentativa, para perceber se foi erro meu de publicação.

    Comparar Aristides de Sousa Mendes a Vasco Graça Moura e os judeus a fugir da perseguição nazi a consoantes mudas a precisarem de ser salvas, num texto em que o escárnio por Graça Moura e a sua ‘missão’ de salvar as consoantes mudas é claro, é de profundo mau gosto.

    O que o Rui está a dizer é que os judeus não precisavam de ajuda, assim como as consoantes mudas não precisam, e que Aristides de Sousa Mendes foi um histérico a lutar contra o que estava certo (o extermínio dos judeus).

    Talvez não partilhe desta opinião, mas é isso que o seu texto diz. Comparar consoantes aos judeus vítimas do nazismo e depois dar a entender que as consoantes não precisam de ser salvas… borda o anti-semitismo.

  • Carlos Álvares

    Mais uma vez, uma critica inteligente, precisa e sentida!

  • joão viegas

    Caro Pedro Lérias,

    Sendo à partida de excluir que lhe tenha escapado que o post não é propriamente sobre o Aristides de Sousa Mendes, tenho o seu comentario por ironico, mas não percebo qual é a intenção…

    Reforçar o que é sugerido por Rui Tavares, ou seja que é perfeitamente ridicula a postura de “resistência combatente” dos adversarios do acordo ?

    Boas

    • Pedro Lérias

      Caro João, não me refiro de todo ao acordo. Refiro-me à banalização da perseguição dos judeus que é usada de forma desadequada e de muito mau gosto pelo Rui Tavares. Sobre o acordo, todos nos tornámos peritos, cada um tem a sua opinião e não me apetece entrar também aqui nessa guerra.
      Mas com certas coisas é de mau tom ironizar, e o Holocausto é uma delas.

  • Daniel Maia

    Senhor Tavares senti-me revoltado ao começar a leitura deste seu texto. Sei bem que um comunista como o senhor tem dificuldade em manter a sua identidade nacional mas não deveria ser tão evidente o teor político do seu comentário. Apesar de eu não ser um apreciador do carácter ou ideologias do sr Moura estou de acordo com ele. Sou um leigo em matéria de linguistíca mas neste caso mesmo o mais comum dos mortais como eu, um homem do povo desinstruído e quase acultural, percebe que este tratado foi pernicioso para a nossa língua. A pressão para apressar a modernização por parte dos homens de esquerda sempre vos levou a aproximar do ridículo. Neste caso aproximaram-se do ridículo de uma língua seguir os ditames dos governantes de um país que não o seu de origem. Tenham o senso comum de entender que o povo somos nós, e nós é que temos de escolher de hoje em diante e náo os senhores como você pequenos burgueses auto-intitulados superiores intelectuais só porque tiveram mais oportunidaes que os demais. Sem mais assunto deixo-lhe um cumprimento cordial Daniel Maia

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