Para muita gente, “público” é o que é do estado, e o estado é simplesmente o governo. Nada mais errado. 

Uma das grandes coisas que este jornal tem é o seu nome, escolhido pelo seu primeiro diretor, Vicente Jorge Silva. Presumo que ele tenha tido de levar a cabo um persistente trabalho de persuasão, porque “Público” é um daqueles nomes que só parece evidente depois de não ter parecido evidente durante bastante tempo. Sei que foi assim quando o jornal apareceu, com um nome que não era de jornal, e que depois se tornou num clássico instantâneo (o cabeçalho original, de Henrique Cayatte, com as letras muitos chegadas umas às outras como os fustes de uma colunata num templo greco-romano, ajudavam a dar-lhe essa dignidade).

O nome era bom porque “o público” está para a nossa sociedade como o oxigénio está para os nossos organismos. Falo aqui não do jornal, mas do “público” enquanto conceito. Tão difícil de definir: é público o espaço público; é pública a opinião pública; é público tudo aquilo que é nosso, compartilhado. As nossas democracias nascem de uma visão do público. O nosso mundo de ideias também: sem a emergência da esfera pública, no século XVIII, não teria havido iluminismo. Aliás, o iluminismo é a esfera pública, “República das Letras”, como então lhe chamaram.

Aquilo que é público tem uma característica importante:não esmaga nem asfixia o que é privado. Pelo contrário, o nosso mundo interior, pessoal, a nossa dignidade enquanto pessoas privadas, respiram e florescem num mundo em que o que é público é entendido e respeitado. A pessoa que lança lixo para a rua achando que é muito livre vê-se forçada a pisar o lixo dos outros iguais a ela.

Agora que penso bem nisso, o nome do Público foi lançado a contra-corrente, num final dos anos oitenta para princípio dos anos noventa em que a própria ideia de público, o próprio conceito, estava sob ataque de uma visão curta e mesquinha da excelência do que era privado. Uma visão que – repito – compreende tão mal o público como o privado. Porque ao querer expandir o privado contra o público destruiu até o privado numa dinâmica de refeudalização da sociedade.

Essa visão ignorante persistiu, e até se agravou, nos dias de hoje. Para muita gente, “público” é o que é do estado, e o estado é simplesmente o governo. Nada mais errado. O estado e o governo podem ter papéis importantes na defesa do que é público, tal como podem massacrá-lo e extingui-lo. Mas o estado e o governo não esgotam o que é público. A sociedade, ou a comunidade, como preferirem chamar-lhe, têm um papel fundamental na preservação daquilo que é público. Todos nós como pessoas privadas também, pois o público é maior do que a soma das partes individuais – e como tal favorece a cada um de nós como indivíduo.

Até o mercado precisa do público – do espaço público, da esfera pública, da própria ideia pública – para sobreviver. Mercado a mais, como estado a mais, mata o que é público.

Não se pode entender a própria República sem entender a ideia de público. É preciso voltar a explicar por que não se deve encher um banco público de gajos do partido, porque o serviço público tem uma ética própria, uma natureza própria, que deveria ser ensinada ao enfermeiro e ao professor como ao juiz e ao diplomata. Ou que nem precisaria de ser ensinada, se fosse respirada naturalmente em todos os espaços da república.

Esse oxigénio vamos ter de ser nós a recriá-lo através de uma nova disponibilidade cívica, que é (para completar a metáfora) assim uma espécie de clorofila.

NOTA: este texto foi corrigido porque na sua primeira versão afirmava, erradamente, que o nome “Público” tinha sido inventado pelo crítico Augusto M. Seabra. O erro foi meu.

One thought to “O público”

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Sem duvida:

    Agora que penso bem nisso, o nome do Público foi lançado a contra-corrente, num final dos anos oitenta para princípio dos anos noventa em que a própria ideia de público, o próprio conceito, estava sob ataque de uma visão curta e mesquinha da excelência do que era privado. Uma visão que – repito – compreende tão mal o público como o privado. Porque ao querer expandir o privado contra o público destruiu até o privado numa dinâmica de refeudalização da sociedade.

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