“O incêndio tem agora vários focos. O pânico generalizou-se e ninguém se entende.”

Imagine-se uma rua. Vinte e sete casas espalhadas ao longo dela, das quais dez são vivendas; outras dezassete têm paredes meias. O incêndio começou numa destas, onde o vizinho grego guardava papel velho e toda a espécie de tralha, sem dizer nada a ninguém. Num instante as chamas já eram maiores do que o homem.

Não era suposto aquilo acontecer: na Comissão de Moradores todos tinham prometido limitar as quantidades de papel e madeira em casa. Mas e agora?

Algumas das casas mais ricas tinham reservatórios de água e os transeuntes correram a bater à porta da vizinha alemã. “Agora não posso”, disse ela, “tenho visitas”. Os transeuntes ficaram pasmados, com a porta fechada nos seus narizes. Ela não deve ter percebido, pensaram. Recuperaram coragem e insistiram. Ao toque da campainha, a vizinha reabriu a porta. “O que foi?” — “O fogo, o fogo”, disseram eles — “Mas eu não vos disse que tenho visitas? É importante para mim! Antes de se irem embora não posso fazer nada.”

Os transeuntes deram alguns passos desiludidos até verem que as labaredas ameaçavam já outras casas. Um deles pensou “isto não pode ser” e foi a casa do vizinho francês para o convencer a convencer a vizinha alemã.

À terceira vez, a vizinha alemã estava furiosa. “Tu, aqui? Devias ter mais juízo! Se te pões do lado dos irresponsáveis, eles vão acabar por gastar o teu reservatório de água, que não é tão grande como o meu! Se o grego não fosse grego, nada disto tinha acontecido.”

O fogo acabou por passar à casa do irlandês, que tinha tido de guardar ali muita papelada dos seus bancos. E depois chegou à casa do português, que andava na mó de baixo desde que a loja do chinês, na rua de baixo, vendia as mesmas coisas por metade do preço.

Depois de despachar as suas visitas, a vizinha alemã lá emprestou uns baldes — “Cuidado com eles, que custaram tanto a ganhar! Ai os meus ricos baldes” — desde que os vizinhos se comprometessem com uma série de condições — “Queriam baldes sem contrapartidas? Tivessem comprado os vossos!”

Os vizinhos das vivendas — o inglês muito satisfeito com as sebes que, em boa altura, tinha mandado plantar entre a casa dele e as dos outros — tinham também as suas opiniões e as reuniões da Comissão de Moradores ficaram cada vez mais longas e inconclusivas.

Entretanto o vizinho italiano dava festas, nas quais se dançava um tipo especial de tarantella. Quando o fogo lhe chegou a casa, a alemã e o francês tiveram de o expulsar com maus modos. Ficou sentado na rua, com um cobertor em cima dos ombros e a cara muito zangada.

O incêndio tomou agora conta de várias casas. A família espanhola e o casal belga (a falar de divórcio há anos) têm visto faúlhas a entrar pelas janelas e andam muito nervosos. Mas a partir de que o fogo entrou na casa do italiano, grande e central, já ninguém está seguro. Na casa do francês — e na do austríaco — o calor começa a sufocar.

O incêndio tem agora vários focos. O pânico generalizou-se e ninguém se entende — “e se chamássemos os brasileiros e os chineses para apagar o nosso fogo?”, aventou o francês. Dois dias depois viram-no com a alemã, falando em mudarem-se para uma rua só deles. “É só teoria”, disse.

Mesmo para isso já é demasiado tarde.

A única solução agora seria abrir as torneiras do Reservatório Central. Tossindo por causa da fuligem, enquanto tapa a boca com um lenço, a vizinha alemã não deixa. “Nem pensar! Nunca mais me esqueço de umas contas altíssimas que o meu avô teve de pagar nos anos 20!”

7 thoughts to “Brincando com o fogo

  • Conceição Cotta

    Bom dia Rui!

    Que tal brincarmos nós também?

    Qual a reacção do dueto se se sugerir a criação de outra zona, periférica, constituída por Portugal, Espanha, Itália, Grécia e por quem mais o quisesse?
    A moeda, única, teria um valor inferior ao euro, claro!
    Dominaríamos uma costa marítima “colossal”!
    Estou convencida de que o resto do mundo, em geral, bateria palmas.

    Adoro as suas crónicas!
    Cumprimentos

  • Igor

    Falta dizer que o Reservatório central não tem àgua!! tem gasolina que vai ser despejada sobre as labaredas!!

  • Ricardo

    Belo apanhado dos ultimos 3 anos no bairro!

  • Abraracourcix

    Mas que brilhante ilustração do que a União Europeia vive (e onde vive) neste momento!

  • António Nunes

    Para irritar mesmo a Alemanha, o melhor seria essa moeda única ser a Libra inglesa (eu, que nem simpatizo muito com eles). E fazer o que os ingleses sempre souberam fazer tão bem: ser liberais, por um lado (a BBC, parece, foi um bom veículo para tal crença – e a Britcom), e proteccionistas pelo outro.

  • Nuno Lima

    Parabéns !! muito boa analogia , textos destes deveriam ser publicados nos jornais , infelizmente a media corporativa não gosta muito de informar o povo no que diz respeito a certas coisas.

  • orlopesdesa

    http://standardsandpeople.wordpress.com/2011/10/07/fogo-no-quintal-do-vizinho/

    Este foi escrito a 7 de Outubro, mas a sequela ficou em estado vegetativo… Por isso um muito obrigado ao Rui Tavares pela parte 2…

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