Cnua de Bucolo, aldeia de Loidua, suco de Buibao, distrito de Baucau, Timor-Leste. — Para chegar aqui é preciso fazer a estrada principal, depois uma estrada secundária asfaltada, depois uma estrada de terra e pedras, e depois abandonar o carro e caminhar pelo meio das árvores. Parece mais complicado, mas é coisa para não mais de vinte minutos.
Uma timorense vai estudar para Portugal e os seus pais — que se chamam Francisca e Francisco — querem conhecer pessoas com quem ela vai conviver a partir dos mês que vem. Ele é pequeno, sempre sorridente, com um olhar espertíssimo e atento a tudo. Ela é alta, e altiva também, com um rosto sério, de bronze, que só de vez em quando se abre para um sorriso.
Recebem-nos à porta de uma casa sem portas, de paredes de barro e telhado de folhas, já era de noite. A língua que ambos falam é macassai. Para ajudar na tradução, um irmão e um primo, ex-guerrilheiros, que falam em português, e que nos são imediatamente apresentados. Depois saem da casa as irmãs da estudante. Depois aparecem das casas vizinhas as suas tias. Depois surgem de todo o lado os seus primos. As saudações são intermináveis. De um momento para o outro chegaram dezenas de pessoas, o clã de Bucolo em peso. Tratam-nos como iguais; se pedem algo, o que é raro, é sempre apenas uma coisa — livros.
Sentamo-nos para comer; decido perguntar à mãe como era a sua filha quando pequena. Não tenho resposta, presumo erradamente que por erro de tradução. Repito a pergunta. Não tenho resposta. Insisto. Silêncio. Incómodo. A mãe olha para mim mas não diz uma palavra. Calo-me.
O primo, que também é professor, muda de assunto. Ao falar usa expressões como “lavrar a várzea”, analisa comparativamente os vários secretários-gerais das Nações Unidas, diz que ensina português sem a sua escola ter um dicionário ou uma gramática.
Há poucos dias, nos Encontro de Baucau, inaugurámos uma sala de leitura com livros recolhidos entre editoras, jornais, amigos. Em poucos dias, sem divulgação, sessenta caixas, enviadas através da GNR (a quem, em Timor, nunca ouvi a palavra “não” e às vezes vi responder a pedidos que ainda nem tinham sido feitos). Mas esses livros foram para a cidade. E afinal, é nos sucos (ou freguesias, onde existem aldeias e “cnuas”, que talvez sejam clãs?) que vive a maioria dos timorenses. Descobrimos agora que um dicionário (“dos ilustrados”, precisa o professor) e uma gramática são para as muitas escolas de suco um bem essencial. Ninguém nos fala de falta de comida ou de roupa; ninguém pede brinquedos ou camisolas da seleção, dinheiro nem pensar. Livros, só. Um dicionário e uma gramática.
Combinamos o seguinte. O professor vai enviar-me uma lista com os endereços de 20 escolas de suco. Eu vou divulgar essa lista (pelo meu blogue talvez, mas avisarei aqui) e encontrar vinte pessoas que lhes enviem um dicionário e uma gramática (pelo correio). Se der certo, repetimos com mais vinte escolas.
De repente a mãe diz uma palavra. Todos se calam. No silêncio dos outros ela vai usando as palavras macassai sobre como a invasão indonésia a obrigou a fugir para as montanhas, como voltou a descer, como ela e o marido fizeram esta casa de barro no meio das árvores, como a filha foi a primeira a nascer ali e como ela era quando pequena. Segue falando por uns minutos.
Está a responder, ponderada e pormenorizadamente, à pergunta que lhe fiz meia hora antes. Peço tradução, mas não é possível. A filha está a chorar; o seu tio também.
3 thoughts to “Na cnua”
Grande iniciativa, alinho no desafio!!
Parece ser tempo de curar feridas e voltar a sonhar sonhos que pareciam não mais existir. E isso, no tempo paciente de quem tece com cuidado, esmero e ponderação. Pois é a própria história que está a ser tecida, em liberdade.
“Não se pode, aliás, ter ilusão de compreender Timor. Deve-se apenas começar a compreender. E depois começar outra vez”. (Rao noc rao?)
“Tratam-nos como iguais; se pedem algo, o que é raro, é sempre apenas uma coisa — livros. (…) De repente a mãe diz uma palavra. (…)Está a responder, ponderada e pormenorizadamente, à pergunta que lhe fiz meia hora antes.”
O historiador terá noção de que nesta obra está a ser entretecido também?
Na cnuo sinceramente nã cnuo
é muito artificial….
principalmente o fim
ou então timorenses e povos do sahara apesar de pertencerem à mesma espécie têm sensibilidades temporais muy desfasadas