A crise está a minar a democracia na Europa. O desafio é criar uma democracia europeia que vença a crise.
Daqui a meses poderemos sofrer pressões para sair do euro. Nessa altura já a turbulência terá dominado a Espanha e a Itália. (E a Bélgica? Que acontecerá a um estado com uma dívida pública equivalente a cem por cento do PIB, que não tem governo há mais de um ano e cujos partidos namoram com o fim do país?)
Abandonar o euro pode ser menos intolerável do que permanecer nele. Mas os tratados não permitem abandoná-lo sem abandonar a União. E uma União Europeia que tenha falhado no euro será uma sombra dos sonhos passados. Que sucederá então?
Não pensamos nisto todos os dias, mas as entidades políticas acabam. A União Soviética acabou — quem o imaginaria um par de anos antes? Acabaram grandes impérios como o Austro-Húngaro — e também em pouco tempo. A Gran Colombia partiu-se em Colômbia e Venezuela.
Um exemplo mais adequado seria o da Sociedade das Nações, fundada após a Iª Guerra Mundial para garantir a paz perpétua, especialmente na Europa. A paz perpétua durou somente trinta anos; reparações de guerra economicamente insustentáveis, a degradação social das democracias e o desmantelar do sistema financeiro baseado no padrão-ouro levaram a uma nova Guerra Mundial.
Um livro de Karl Polanyi que tem o título desta crónica explica como um evento financeiro em grande escala não se limita nunca a um mero evento financeiro, mas é um catalizador de consequências sociais e políticas pelas quais às vezes, se paga um preço duríssimo. Eu não sei se o euro é, para os nossos dias, o que foi o padrão-ouro no seu tempo. A história não ensina lições. Exceto duas: pouco antes de acontecer, é imprevisível; pouco depois de acontecer, é irreversível.
Estão enganadas as pessoas que vêem na crise da União Europeia apenas uma forma de voltar ao normal: os países emitindo a sua moeda e elegendo os seus governos. O mundo já não é esse normal. A China, a Índia e o Brasil juntaram-se aos EUA para ditar as suas regras. Pela sua posição, Portugal não poderá ser uma espécie de Albânia nos anos 70; pelo seu tamanho não poderá ser uma Singapura dos 90. Médio à escala europeia e pequeno à escala global, oceânico e pouco continental, teríamos sempre de procurar para o nosso país uma inserção global, provavelmente ligada ao Brasil e ao mundo lusófono. Deveríamos trabalhar mais nisso. Não temos futuro isolado.
Na Europa não vejo um cenário de desagregação que não seja arriscado. Mesmo que fiquemos longe das calamidades de que este continente é capaz, basta o desenvolvimento das tendências atuais para que a União Europeia seja globalmente irrelevante daqui a trinta anos.
A crise está a minar a democracia na Europa. O desafio é criar uma democracia europeia que vença a crise. Um mero exemplo: o deputado europeu Andrew Duff propõe que o Presidente da Comissão Europeia seja eleito numa segunda urna nas próximas eleições europeias em 2014. O sucessor de Barroso teria assim uma legitimidade feita de 500 milhões de votos, e poderia impôr a sua voz aos bloqueios dos estados membros. Este é um passo pequeno e enorme ao mesmo tempo — em direção a uma federação, palavra que assusta muita gente.
Confesso que me assustam mais as alternativas. Nos próximos tempos todos teremos de decidir se vamos tentar antecipar a nossa Grande Transformação, ou ser trucidados por ela.
2 thoughts to “A Grande Transformação”
O artigo é interessante, mas a «paz perpétua» durou… vinte anos.
Caro Rui Tavares,
Parece-me que a comparação entre o padrão-ouro e o euro, que também sempre estabeleci, é bastante adequada. E recordo de Polanyi as expressões que utiliza para descrever os mecanismos de compensação necessários para resolver um choque assimétrico, e parece-me ser aquilo que vivemos actualmente. Lembro também a referência que o autor faz aos “lemmings”, dizendo que a humanidade não se comporta como estes, caminhando para um abismo sem lutar.
Em todo o caso, o seu post é muito bom, e reflecte de modo sensato sobre as profundas alterações que se estabelecerão na Europa. Essas alterações são inevitáveis, assim me parece, e o problema é esta tentação maldita de pensarmos sempre que tudo o que tomamos por garantido se comportará como sempre nos habituámos – mesmo depois de Hitchcock ter refutado este entendimento com o seu maravilhoso “pássaros”.
Cumprimentos