Um projeto político precisa de idealismo para marcar a diferença em relação ao que existe. E pragmatismo porque terá de construir uma maioria, e essa maioria só se faz com os que são diferentes de nós.

Costuma dizer-se que toda a política é local — ou seja, que uma eleição se ganha ou perde pelo mais paroquial preconceito. Mesmo que fosse verdade, deveríamos fazer política para que se torne mentira.

Considerem a seguinte história. Há uns anos, a província italiana da Puglia preparava-se para eleger um governador. Região conservadora, pobre, há anos nas mãos dos clientelismo e da versão local da mafia, a Sacra Corona Unita. A esquerda, como sempre, dividida. Os caciques já tinham as suas escolhas em mente e os aparelhos partidários em campo.

Mas houve uma ideia simples que se intrometeu. E se deixassem o povo de esquerda — de qualquer partido — escolher o candidato? Organizaram-se umas eleições primárias abertas a todos. Quem votasse faria uma contribuição quase simbólica, em dinheiro que iria depois para o cofre de campanha. Assim aconteceu.

Quando se contaram os votos, surpresa geral. O vencedor era de um partido novo e pequeno (Esquerda e Liberdade; agora Esquerda, Ecologia e Liberdade) e chamava-se Nichi Vendola.

Os caciques levaram as mãos à cabeça. Vendola era poeta, gay e comunista! Como imaginava sequer poder ganhar numa região como a Puglia? Os idealistas que tinham votado, obviamente não entendendo nada da política a sério, tinham deitado tudo a perder.

Vieram as eleições gerais. Vendola derrotou o candidato de Berlusconi e tornou-se um dos governadores mais populares e respeitados do país.

Isto foi há três anos. Ontem, um candidato do mesmo partido, escolhido da mesma forma, e tendo derrotado nas primárias o candidato mais moderado, ganhou a Câmara de Milão. E ali, onde Berlusconi começou, diz-se que foi o princípio do fim de Berlusconi.

Em Nápoles a coisa foi ainda mais difícil. Nessa cidade o crime organizado dá pelo nome de camorra e domina bairros inteiros, mandando-os votar nos candidatos mais fáceis de vergar.

A este panorama se lançou como candidato Luigi De Magistris, um ex-juiz anti-máfia e agora eurodeputado. O seu partido era a Itália dos Valores, vagamente apolítico, mas De Magistris é vigorosamente de esquerda (fundou comigo e mais uma dúzia o LEFT caucus no Parlamento Europeu). Ninguém lhe dava grande hipótese, mas De Magistris passou à segunda volta das eleições, à frente do candidato mais convencional do centro-esquerda.

Ontem, na segunda volta das eleições, o que aconteceu foi para lá de qualquer expectativa. O bravíssimo De Magistris ganhou com 65% dos votos, trinta pontos à frente do candidato apoiado por Berlusconi. Nos bairros dominados pela camorra as pessoas venceram o medo e deram-lhe maiorias em torno dos sessenta por cento.

Conto esta história não para contrariar qualquer pessimismo nas próximas eleições, mas para dizer aquilo que os italianos aprenderam às suas custas nos últimos anos. Que um projeto político, se quer de facto mudar as coisas, precisa de idealismo e pragmatismo. Idealismo para marcar a diferença em relação ao que existe. E pragmatismo porque terá de construir uma maioria, e essa maioria só se faz com os que são diferentes de nós.

Conto esta história para sugerir que a política ganhadora não se faz com os velhos hábitos; faz-se quebrando os hábitos, para forçar a entrada de ideias novas, para criar esperança e para fazer regredir os preconceitos.

E conto esta história para demonstrar que, não, a política não é local. A crise do euro não é local. A primavera árabe não é local. A eleição de um partido na Finlândia pode determinar mais a nossa política do que o voto nos três partidos portugueses da troica. E a eleição de dois presidentes em Milão e Nápoles pode ser o sinal de um ressurgimento na Europa. Oxalá.

4 thoughts to “Um ressurgimento

  • NIC

    O seguinte texto foi enviado – e devidamente pago – ao jornal Diário de Notícias, tendo sido sujeito a uma censura prévia “por causa do conteúdo”, não podendo portanto ser publicado nas páginas de publicidade da edição de Sexta-feira, dia 3 de Junho.

    Tendo em conta que faz o apelo ao voto, e é manifestamente mais pedagógico do que boa parte dos ‘classificados’, tratando-se apenas de uma forma de exercer cidadania, apelamos a que partilhem esta mensagem entre os vossos contactos.

    Mais, gostaríamos de saber se é possível publicar o mesmo texto num qualquer orgão de imprensa livre que se disponha a fazê-lo.

    Antecipadamente ratos,

    Manifesto contra a indiferença

    Caros Amigos e Companheiros,

    Vocês sabem que entre nós, que estamos desiludidos com os partidos do poder, e que, por isso, já não votamos, e todos aqueles que não querem ou nunca foram votar, por desprezarem a política e o sistema partidário e se sentirem excluídos da sociedade, que, como dizíamos, entre todos nós, somos maiores do que o PS ou o PSD, ou até do que uma coligação, entre qualquer destes partidos, e o CDS-PP?

    E que, como sabem, vamos ser estrangulados por 2 troikas, uma internacional, dirigida pelo FMI, e outra, bem portuguesa, dos partidos que assinaram esses acordos, o CDS-PP, o PSD e a actual e antiga direcção do PS (antigo governo maioritário, depois minoritário e, agora, demissionário, mas de tão grande sucesso, que não admite sequer uma crítica à sua governação. Ai! O Eng.º. Sócrates é um grande político, vítima de múltiplas e tremendas conspirações que conduziram o país a esta crise. Ai! O Eng.º. Sócrates nunca mentiu, equivocou-se, dizendo às 2ªs Feiras, o que os factos, ou fontes mais sérias, vêm desmentir nos dias seguintes. Que cambada!).

    Com base nesses entendimentos, vamos ser nós a pagar os erros do sector financeiro e dos excessos de gastos da governação; a economia continuará em recessão; o desemprego crescerá para níveis nunca vistos, tal como o trabalho precário e também o número de jovens à procura de uma primeira saída profissional.

    Todas as nossas vidas serão gravemente afectadas. Todos pertencemos a ‘gerações à rasca’ e uma boa parte de entre nós sem sequer merecerá respeito. Aqueles de quem se diz ‘que não querem é trabalhar’; ou que ‘são jovens e foram mal-educados pelos pais e que precisavam era de ter levado umas bofetadas’; que ‘vivem de subsídios e ainda são responsáveis pelo crescimento da violência no país, os africanos, brasileiros e outros imigrantes’. Estas generalizações que se aproximam da xenofobia, mas que até os meios de comunicação utilizam regularmente.

    Então, e o que podemos fazer? Ir para o Rossio acampar? Ou fazer manifestações, como a do dia 12 de Março? Tornar a coisa bem mais séria, com fazem os n/ vizinhos espanhóis?

    Sim, talvez tenhamos que fazer isso tudo, mas há um acto muito simples que podemos fazer este Domingo. Ir votar!

    E em quem?

    Vamos dar uma oportunidade à Esquerda. Vamos todos votar ou no Bloco de Esquerda ou na CDU, a nós tanto nos faz. Vamos fazer História e dar-lhes uma votação tão significativa que possam opor-se à formação de governos dos 3 partidos que assinaram os acordos com a Troika.

    Seremos nós como aqueles que dizem mal de nós? Teremos preconceitos e faremos generalizações, dizendo que todos os políticos são iguais. Que todos são como o Sócrates ou o Paulinho Portas dos Submarinos, ou burros como o Passos Coelho que sentiu necessidade de se afirmar como ‘o mais africano dos candidatos’, frase que provocou grande alegria ao Nelson Mandela, ao Leopold Senghor, ao Luther King e ao Eusébio, bem como à Amália, que também era uma anti-racista feroz.

    Não acham que o Jerónimo de Sousa e o Francisco Louçã são mais sérios do que aqueles que têm passado pelos governos? Se desejassem dinheiro ou poder não estariam nos outros 3 partidos, em que a sua capacidade e inteligência e, sobretudo, a troca de ideais, lhes ganhariam a posição que desejassem? Não. Em vez disso, escolheram lutar contra o poder instituído e a isso dedicaram toda a sua vida.

    Mas não vamos dar-lhes um mandato à toa. Vamos pedir-lhes que se unam e escolham um primeiro-ministro fora dos seus partidos. Alguém também de Esquerda, mas que se encontre mais próximo dos socialistas.

    Para nós, poderia ser a Arq. Helena Roseta, pela sua capacidade, inteligência, coragem, honestidade e carisma. Mas realmente tanto nos faz qual seja a personalidade, desde que reúna as mesmas características e esteja disposta a seguir as seguintes ideias de base:

    – Retomar, de imediato, as negociações com a Troika, exigindo melhores condições, tanto de prazos, como de juros, para pagarmos as tais dívidas, mas, sobretudo, impedindo-os de controlar o n/ destino colectivo.

    – Iniciar contactos com todos os países europeus, cuja situação seja semelhante à nossa, façam ou não parte da CE, vendo o que podemos fazer uns pelos outros e criando um grupo de pressão, contra os países que mandam actualmente na Europa.

    E algumas medidas mais concretas:

    – Reverterem para o Estado, a partir de hoje, todos os excedentes das pensões de reforma (ou aglomerados de pensões) que excedam 8 vezes o salário mínimo nacional.

    – Reverterem para o Estado, todos os excedentes relativamente ao salário de Presidente da República, dos Funcionários de Estado colocados em Institutos, Consultorias e quaisquer outros organismos e fazer o mesmo com todos os dirigentes das Empresas Públicas.

    – Estabelecer-se um imposto ‘patriótico’ sobre as Grandes Fortunas, de forma a que todos compartilhem os sacrifícios.

    – Retomar-se um modelo de Estado mais interventivo em toda a sociedade, que imponha, por exemplo, uma moderna ‘Lei das Sesmarias’ em que os proprietários rurais sejam obrigados a trabalhar as suas terras, ou a alugá-las, ou vendê-las, a quem o faça, em vez de ficarem a viver de subsídios.

    – Um Estado e um Governo que intervenham em toda a economia, protegendo a exportação e controlando as importações; apoiando novos projectos de empresas e actividades, em todo o país; combatendo radicalmente o desemprego e acreditando na capacidade da juventude; implementando medidas rigorosas de controlo da corrupção e de combate à fraude fiscal.

    – Um Governo capaz de correr o risco do país ser expulso da CE e da zona €uro, se preciso for, mas que inicie a recuperação económica, em detrimento do controlo do défice e de toda a estrutura financeira, deixando até, se for preciso, cair a banca privada, sobretudo os bancos mais ligados a casos de corrupção.

    Há tantas coisas a dizer, e por fazer, que poderíamos ficar aqui o dia inteiro, mas confiamos que os dirigentes do Bloco de Esquerda e da CDU tenham capacidade de, conjuntamente com esse primeiro-ministro e outros independentes, formularem muito melhor do que nós, todo um programa que nos restitua a dignidade.

    Facebook: NIC – NÚCLEO DE INTERVENÇÃO CÍVICA

    Ou por email: nuc.civ1@gmail.com

    Núcleo de Intervenção Cívica

  • artnunes

    Compreendo e estou de acordo com muitas das coisas que aqui se colocaram, mas deixo as seguintes reflexões:

    – não será a esquerda (ou o que é senso comum definir como esquerda, não penso que esta definição seja ainda definidora per si de tudo) a primeira a dar o exemplo, a dar o primeiro passo, a dar a volta a uma longa, pesada e dolorosa história de divisão, ressentimento e ausência de pensamento estratégico ou pragmático e a propor-se, à partida, ao eleitorado, devidamente coligada, digna, dando um sinal de que quer ir além da contagem de votos ou cabeças, da pura marcação de espaço ou influência, que quer ser alternativa de governo ou poder?

    – Não teria sido a Arq. Helena Roseta, por exemplo (há outros) uma excelente escolha conjunta para a Presidência da República, em vez dos candidatos Alegre e Lopes?
    E então, porque não houve união nessa altura? As circunstâncias não eram suficientemente difíceis e dramáticas para obrigar a, pelo menos tentar? Que vantagens houve em ter um candidato fechado num partido e outro (em segunda dose) em conjunto com o partido do poder? Em que é que isto mostrou aos portugueses que existe um outro caminho ou solução credível a propor?

    Façam isso, cheguem-se à frente, dêem um sinal claro que o passado passou e o que conta é a situação presente e a vontade (mesmo) de contribuir para um outro futuro, mostrem ao povo que a união é possível para além das palavras, que se pode contar com esta área política de forma persistente e não apenas quando há apertos, limpem definitivamente o pó do armário e dispam os fatos que já não servem, definam-se de forma clara em termos de projecto político e económico, posicionem-se sem disfarces face às questões europeias e mundiais, dêem razões firmes e fortes para acreditar numa esquerda como força credível de representação parlamentar. Ou fiquem como estão a lamber as feridas.

    Se conseguirem isto, serem idealistas realistas e pragmáticos programáticos, pode ser que tenham ao seu lado cada vez mais portugueses. Caso contrário, continuarão a combater os moínhos imaginários e a culpar terceiros e a direita pelas suas próprias inaptidões e insucessos.

    Termino com uma reflexão final: se tudo isto é essencial, possível e necessário, porque ainda não foi feito ou tentado? Porque é que o tempo passa sem avançar?

  • Conceição Pinto da Rocha

    Caro Rui Tavares
    Achei muito interessante e encorajador o seu artigo “um ressurgimento” de 2/6. Para que, além disso, possa ser inspirador e indutor de mudança cá, pode aprofundar mais e esclarecer melhor o conteúdo do artigo? E como em Portugal?

    Muito obrigada,
    Conceição Rocha

  • Henrique

    PS e Bloco (ou melhor, os seus tribunos) deviam refectir sobre este seu texto bastante oportuno.

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