Daqui a umas décadas os chineses serão mil milhões, mais produtivos, e os alemães continuarão menos de um décimo dessa população.
Há uns anos fazia-se esta sugestão em palestras e debates: “imaginem quando todos os chineses quiserem ter um carro”. As ruas das cidades chinesas eram nessa altura uma paisagem de bicicletas, milhões de bicicletas pedalando para lá e para cá. No dia em que essas bicicletas se transformassem em carros, o que aconteceria?
A pergunta e a inquietação que ela trazia eram de longo prazo.
A resposta foi de curto prazo. O que acontece, afinal, quando os chineses começam a comprar carros? Cresce a economia alemã; e os alemães começam a preocupar-se menos com a Europa. Parece-lhes evidente que a Alemanha se conseguirá aguentar sozinha no mundo globalizado. Suspeitando que poucos ou nenhuns outros países europeus possam dizer o mesmo, os dirigentes alemães convencem-se de que os restantes europeus precisam mais da Alemanha do que vice-versa. E quanto à mão-cheia de países que se encontram em situação mais desesperada, a resposta da Alemanha — enquanto vai vendendo carros à China — é que se há-de pensar numa solução para nós, os desesperados, mas só se for nos termos deles, os ganhadores. Se essa solução nos desesperar mais ainda, azar.
E eis, em breves palavras, como a venda de um carro alemão na China pode provocar uma crise de nervos na Europa.
Esta história parece simples, mas complica-se daqui para a frente. Uma parte dos carros alemães, é claro, são já fabricados na China. E ainda não chegámos ao ponto em que cada um dos mais de mil milhões de chineses compre já o seu carro. Quando lá chegarmos, é de prever que os chineses comprem carros chineses. Ou até carros sino-alemães, de marca Mercedes-Deng.
Daqui a umas décadas os chineses serão mil milhões, mais produtivos, e os alemães continuarão menos de um décimo dessa população. A luta na globalização talvez não seja tão fácil para a Alemanha nessa altura, particularmente porque há uma série de imponderáveis pelo caminho (a China pode hiperinflacionar, ou a sua economia ser arrefecida para o contrariar, ou o regime entrar em turbulência, etc.).
O euro é, nesse sentido, um excelente balão de ar para a Alemanha. Há outros países europeus que produzem carros (a França, a Itália) e costumavam vender mais através de desvalorizações competitivas das suas moedas. Hoje isso é impossível. Uma vez que o euro é um tabuleiro de jogo que beneficia a Alemanha, é natural que a Alemanha o queira preservar, só mudando alguma coisa desde que tudo fique na mesma.
Tudo ficar na mesma é, contudo, a única história que nunca aconteceu na História. Seria melhor que os europeus percebessem que são quinhentos milhões, dos quais apenas um em cada cinco é alemão, e que os alemães entendessem que esses quinhentos milhões dão mais garantias de sobrevivência no futuro, seja em globalização ou não. É isso, ou começar a pensar em que cenários de fragmentação seriam toleráveis, se é que há alguns.
Nota: a Economist é que descobriu a verdadeira “regra de Juncker” (ver crónica de há uma semana): “se não está a funcionar, faz mais do mesmo”.
Outra nota: por causa de umas declarações de Cohn-Bendit dizendo sobre mim “ça se préparait” (mais no sentido de “previa-se”), um jornalista aventou a ideia de que eu estaria em negociações com os Verdes Europeus dois meses antes da minha saída da delegação do BE. E uma fonte anónima da direção do BE afirmou que eu já teria anunciado à direção política que desejaria sair, duas semanas antes de o ter feito. Ambas as notícias são falsas. O meu copo transbordou no sábado 18 e a minha decisão foi comunicada e tomada entre a segunda 20 e a terça 21 de junho.
6 thoughts to “O Mercedes-Deng”
apenas sobre a revelação da Economist, há um ano li um artigo (de quem não recordo o autor, mas penso que era de uma revista/jornal estadonidense) que analisava a crise da mesma forma: na América, o motor do sistema financeito engasgou-se. Solução: mais poder para o sistema financeiro através das injecções massivas de capital e dos subsequentes efeitos no resto da economia. Na Europa (na altura “descobria-se” a Grécia e as suas contas públicas cheias de truques) um problema que, segundo o autor, advinha da própria União Europeia, através de políticas que favoreciam os países centrais contra os perifércos. Solução: mais Europa (isto é, mais integração económica e política, que irá inevitavelmente resultar em mais poder para os países fortes, como já hoje se vê…)
Mais do mesmo. E cada vez mais Portugal se irá tornar numa província de Espanha, pelo menos até ao dia em que a Península Ibérica se transforme em mais uma província de França…
O que me é mais estranho é que num contexto em que por vezes se fala de expulsar do Euro este ou aquele país, nunca se tenha falado em expulsar a Alemanha (fala-se desta sair para recuperar o marco, mas não é a mesma coisa, e sempre numa óptica em que seria esta a sair por interesse próprio, por nostalgia do Marco, etc).
A sério, o quadro actual é um em que se vê uma série de países de dimensão razoável, Espanha, Itália, etc, a perfilarem-se para terem problemas. Os mais periféricos já entraram no corredor da morte e se hoje se diz que a Grécia tem fortes possibilidades de sair do Euro, diz-e que Portugal também teria, e logo que uma desgraça se anuncia para um país, logo se passa ao seguinte da fila. A estratégia de isolação permitiu construir na mente do público, a ideia de que as responsabilidades das situações de cada país só a este pertenceriam. Talvez até sejam mas não da forma directa com que costumam enunciar. Quando aderimos ao Euro, desistimos de instrumentos económicos que hoje já não se podem usar, o que pressupõe que agora deve haver outras que compensariam aquelas. Se um país se dá mal, poderia-se concluir que ele não soube aplicar as novas ferramentas. Se muitos ou a maioria se dão mal, talvez seja mais sensato acreditar que aquelas não existem ou não funcionam. Se todos tiverem doentes menos um… não será que todos serão normais e um não o é?
O que é que aconteceria se a Alemanha saísse do Euro? Consequência óbvia, a cotação deste cairia por aí abaixo. Os países que hoje sobre o Euro tem dificuldades em exportar, ver-se-iam mais competitivos. As importações ficariam mais difíceis de cá chegar, mas estamos mesmo assim a falar de um tremendo bloco económico com importantes trocas económicas internas… Se a França e a Itália contam com desvalorizações competitivas de facto para venderem os seus automóveis, elas teriam-no. E a concorrência Alemã seria mais fácil de bater. Este argumento parte duma simples constatação: esta crise não é acerca de um ou dois países com dificuldades, é acerca de meio continente enfiado nela e um país que não está.
“Daqui a umas décadas os chineses serão mil milhões (…). Seria melhor que os europeus percebessem que são quinhentos milhões (…)” ????
Pois nem uma coisa nem outra. Os chineses já eram em Julho de 2010 1.338.612.968 pessoas repartidos 56 grupos étnicos e distribuídos por 22 províncias, cinco regiões autónomas, quatro municípios e duas regiões administrativas especiais.
Enquanto a Europa tem 731 milhões de pessoas distribuídas por 50 países.
E não revela seriedade fazer estas salganhadas entre um país milenar, autónomo e independente como a China e um continente que tem 50 países com graus diferenciados de autonomia e independência.
Este texto que li no PÚBLICO, é muito, muito bom, de principio a fim, parabéns Rui Tavares.
A Alemanha a assim continuar terá o fim entre 2020 e 2030.
Se nada se alterar.
Caro Leo,
Parece-me que o que o Rui pretendia era mais ilustrar um facto e parece-me que o conseguiu. Ou poderia ter ido mais longe, mencionando o facto de daqui a dez anos os chineses estarem mais perto de 2 mil milhões e a Europa dificilmente se conseguir aproximar de metade desse numero (com a Alemanha dificilmente a rondar os 5% do valor total de chineses).
Na questao de quem faz os carros alemaes que eles tao prontamente exportam, seria interessante verificar quanta dessa mao de obra vem dos paises periféricos: ou muito me engano ou alguns ‘calos populales’ se calhar ate vao para Xangai via Palmela…
Com análises destas tamos bem lixados…
Gostaria que me informasse onde está publicado o ratio de compra venda de automóveis Alemanha/China…
Porque os dados que eu obtive é que a china produz quase quatro vezes mais do que os alemães…
Mas pronto, tu és deputado e portanto deves ter razão… nesta como em todas as outras coisas…
Agora percebo a base em que são feitas as tuas análises políticas… Agora sei quem fala verdade e quem arranja pretextos da treta para mudar de casaca…