Há ainda formas de, no jornalismo, descrever, resumir, interpretar. Creio que a isso até se chama, salvo erro, fazer jornalismo.
Liguei o aparelho na RTP1. Segunda parte do Manchester-Barcelona, uma boa surpresa, tinha-me esquecido do jogo. Esperei pelo Telejornal. O país a uma semana de uma eleição, num momento crítico, etc. — vocês sabem a história.
A primeira notícia do Telejornal foi sobre o jogo de futebol que eu tinha acabado de ver. Era uma final europeia, tudo bem, mas a notícia era redundante: o jogo tinha acabado 30 segundos antes, que diabo, naquele mesmo canal.
Não me lembro de quais eram as notícias seguintes. As chuvadas, um acidente, essas coisas. Sobre a campanha havia primeiro uma peça sobre o lado íntimo, ou lá o que era, de Pedro Passos Coelho: o candidato explicava que nunca foi gordo, que não gostava de se sentar na relva porque lhe doía o rabo, etc. Tive pena dele; é preciso paciência para fazer aquele papel e ouvir aquelas perguntas, sempre com o mesmo sorriso na cara.
Depois veio uma peça sobre Julio Iglesias, que veio fazer um concerto a Portugal. A RTP decidiu entrevistá-lo — pressupõe-se — pela relevância artística e social do cantor espanhol. Um juízo discutível como outros. Vai daí, do que tratava a entrevista? Do seu álbum? Do concerto? Não. De José Mourinho. Se Iglesias gostava de Mourinho. Se Mourinho era ou não o melhor treinador do mundo. Se Mourinho vai ou não ganhar o próximo campeonato.
A falta de critério cultural dessa entrevista — ou a RTP acha que Iglesias é um cantor importante, e pergunta-lhe sobre a sua música, ou acha que ele está acabado, e não lhe pergunta nada — significa apenas uma coisa: que a RTP tinha desistido de ter uma posição, qualquer que ela fosse. Bastava-lhe ir com o tempo: se toda a gente está obcecada com Mourinho a RTP pergunta sobre Mourinho a toda a gente. Assim o jornalismo fica só uma questão de achar um lugar para pôr a câmara.
A esta falta de critério cultural sucedia-se uma perturbadora falta de critério moral. O telejornal passou para uma peça sobre o caso em que uma adolescente foi agredida por outras duas adolescentes, enquanto tudo era filmado por um jovem. A RTP mostrava o filme, se não quase todo, muito mais do que necessitaria mostrar para que estivéssemos “informados”. Ao contrário do que parecia achar o jornalista e o editor responsáveis, eu não preciso de ver uma rapariga apanhar pontapés na cabeça para saber o que se passa; não ficarei mais informado por cada segundo a mais de pancada. Há ainda formas de, no jornalismo, descrever, resumir, interpretar. Creio que a isso até se chama, salvo erro, fazer jornalismo.
Uma das coisas que chocavam naquela história era como podia o rapaz ter filmado a agressão em vez de parar para pensar. Também chocava, num plano diferente, ver como o jornalista tinha decidido mostrar o vídeo em vez de parar para pensar.
Depois do telejornal, descobri que estar fora do tempo e do espaço vale o mesmo que estar completamente dentro do tempo e do espaço, mas a falar daquilo de que todos já falam, e a fazer aquilo que todos já fazem.
Daqui a poucos dias, a RTP dirá — como todos dirão e precisamente porque todos o dirão — que a campanha foi pouco “esclarecedora”
4 thoughts to “Fora do tempo e do espaço”
Eu já não ligo a televisão há algum tempo (anos). Para já ainda tenho rádio ( TSF e antena 2) e um jornal, onde vou tendo o Rui Tavares, a Alexandra Lucas Coelho, o Rui Cardoso Martins, o Paulo Moura, a Ana Sousa Dias …
Até sempre !!!
Acrescente-se que se trata de uma televisão bem nutrida de subsídios públicos…está pronta a ser privatizada para competir na tonteria geral.
Nota: o dito cantor foi jogador (diz-se que sem grande sucesso) no Real Madrid. Se a jornalista não referiu o facto isso deve-se, provavelmente, a ter presumido que um facto cultural dessa relevância não era desconhecido da generalidade dos ouvintes!
E por falar em descrever, resumir e interpretar, não se percebe porque é que todos os jornais televisivos demoram mais de uma hora.
E a censura que os MCS têm feito descaradamente à contestação em Atenas? milhares pessoas não arredam pé do parlamento, os deputados são impedido de sair do parlamento durante cerca de seis horas, de onde só saem após intervenção das forças policiais e isto não é notícia? Isto apenas merece 5” diluídos?