Lá ao fundo ouvia-se um gemido, uma coisa entre suspiro e exalar de último fôlego. Era Portugal, esmagado debaixo da banca, por detrás do estardalhaço da União Europeia a desconjuntar-se.
Havia nos anos oitenta um filme que se passava num avião lotado em queda. O protagonista era um ex-piloto, alcoólico em recuperação, cuja deixa mais memorável era: escolhi um péssimo dia para deixar de beber.
Interrompi esta crónica durante um mês. Foi um péssimo mês para deixar de escrever.
Tempos medonhos. No Japão, terramoto, maremoto, crise nuclear seguida em direto. Saíamos de casa, tinha explodido um reator. Chegávamos ao trabalho e já havia risco de explodir outro.
No mundo árabe a revolução foi e está a ser brutalmente mutilada. No Bahrein com uma cínica invasão saudita a que erradamente ninguém presta muita atenção. Na Líbia um massacre em Benghazi foi evitado a poucas horas de acontecer (votei a favor de uma no-fly zone com mandato da ONU que o pudesse impedir) mas em vez de uma ação restrita para proteção de civis e com vista a um cessar-fogo temos agora uma situação pendular com risco de enquistamento ou escalada (eu estava consciente deste risco ao votar e, apesar dele, acho que fiz o que estava certo). E, na Síria, com a repressão fria, seca e brutal característica daquele estado policial.
No Mediterrâneo um barco virou-se e morreram cento e tantos refugiados.
Para terminar, caiu o governo de Portugal. Pouco depois, num golpe de teatro, o primeiro-ministro acabou por aceitar entregar o país à intervenção de um FMI de rosto eurocrático.
Já não era só o avião que se despenhava, como no filme, mas pedaços de fuselagem e equipamento que se soltavam, caindo no abismo. Lá ao fundo, para quem apurasse muito o ouvido, ouvia-se um gemido, uma coisa entre suspiro e exalar de último fôlego.
Era Portugal, esmagado debaixo da banca, por detrás do estardalhaço da União Europeia a desconjuntar-se.
A União Europeia falhou. Não pode alegar que não viu chegar a crise. Não pode alegar que não tinha os instrumentos que pedira. Desde que o Tratado de Lisboa entrou em vigor, tivemos teoricamente as presidências sueca, espanhola, belga, e agora húngara —- além de, não me façam rir, o estimável Sr. Van Rompuy. Na prática, a União viveu sempre sob presidência alemã: incompetente, míope e encabeçada pela mais fraca estadista que aquele país teve desde o pós-Guerra.
A esquerda portuguesa falhou. Não quero saber se uns falharam por serem impuros e outros por serem puros de mais. O PS falhou, como esquerda e como governo. Quando se promete lutar até à última para manter o FMI fora do país e colocar a banca nacional e estrangeira perante as consequências das nossas decisões soberanas, e depois se vem comunicar a capitulação como fez José Sócrates, é sinal de que se falhou.
E quanto ao BE e ao PCP — há ano e meio defendi que se entendessem, logo no rescaldo das eleições. Mas o que dizer quando, após doze anos de coexistência, incluindo um governo Barroso, um Santana Lopes e dois Sócrates — “com políticas de direita” — uma década contínua de ataque aos direitos dos trabalhadores e de deterioração das condições de vida, mais o PEC I, II, III e IV — o que BE e PCP têm para oferecer a este sedento povo de esquerda é uma conversa? Alguém aqui não está a ver a urgência da coisa.
Se o Salazar ressuscitasse e o fascismo estivesse para voltar talvez estes nossos partidos nos fizessem o favor de — sei lá — combinar um dia destes tomar um café?
Ou talvez o problema seja meu. O falhanço da União Europeia e da esquerda portuguesa não são coisas que me deixem frio. A derrota profunda do meu país ainda menos. Tanta coisa para reconstruir. Vai ser preciso — palavras recentes de Viriato Soromenho Marques — uma “cidadania heróica”.
2 thoughts to “O falhanço e depois”
Obrigado Rui, por esta magnífica crónica. Obrigado por, sendo livre, te prestares à nossa liberdade!
Dr. Rui Tavares
Gostaria de lhe agradecer as magnificas crónicas que eu regularmente leio no jornal o “Público”.
É sempre gratificante ler os seus textos, correctos e profundamente esclarecedores e, como soi dizer-se, didácticos.
Permita-me sem me alongar muito na minha exposição dizer o seguinte:
Porque não explicar ao povo português, numa linguagem esclarecida e explicita como a sua, mas segundo uma técnica de “merceiro”, permita-me a expressão, o seguinte:
Independentemente de toda a divergência política e ideológica existente, todos os partidos convergiram, politicamente para chumbar o PEC IV.
Face a enorme publicidade feita no âmbito do Congresso do PS, pelo engenheiro Sócrates, a verdade é que no PEC IV os juros seriam pagos a cerca de 9 pontos percentuais, não havendo, apenas, um controlo activo por parte desse mercado à aplicação do plano.
No acordo com o FMI, os juros serão pagos a uma texa de cerca de 5%, apenas com uma diferença, um controlo draconiano sobre a aplicação do plano, por parte do FMI.
Esta diferença para o primeiro ministro Sócrates, era essencial, no PEC IV, apenas fiscalização sem intervenção activa do agente fizcalizador, com o FMI, intervenção regular e activa do agente fizcalizador.
Parece-me que se os partidos, ou em particular aquele a que está, por natureza ligado, agarrarem na ideia, note-se antes do inicio da campanha, seria, quanto amim, uma estratégia ganhadora.
Parece-me que tem pernas para andar.
Os meus sinceros agradecimentos, pela atenção que possa vir a mostrar por esta ideia, que com a sua fina e extraordinária caneta melhor explicará.