O objetivo da conversa e dos sorrisos é somente dizer: estamos num estado policial. Eu sei que estamos num estado policial. E você também sabe. Portanto aqui as coisas passam-se assim, as paredes têm ouvidos e não se pode dizer tudo.
Quando estive na Síria — em Damasco e na província de Al Qamishli, no extremo norte do país — não se dizia a palavra “Israel”. Em alternativa pronunciava-se “Disneylândia”. “Quando eu estive na Disneylândia…”, “Ah sim?”, “Não, não é essa, é a outra” — esta troca de galhardetes era acompanhada com um sorriso. Não só pelo ridículo da situação, não só pelo militantismo de um país que tem uma parte do seu território — os Montes Golã — ilegalmente ocupado por Israel, e não só por ser evidente que qualquer agente da polícia secreta sabe que “Disneylândia” quer dizer “Israel”.
O objetivo da conversa e dos sorrisos é somente dizer: estamos num estado policial. Eu sei que estamos num estado policial. E você também sabe. Portanto aqui as coisas passam-se assim, as paredes têm ouvidos e não se pode dizer tudo.
Na verdade, Israel — perdão, a Disneylândia — era o mínimo. O que não podia mesmo falar era nos curdos. A Síria é um país árabe, um orgulhoso país árabe, e os curdos que são maioritários na tal província de Al Qamishli, entalada entre o Iraque e a Turquia, e numerosos em muitos lugares, passam por um processo de invisibilização. Muitos milhares são, aliás, apátridas. Não possuem qualquer documento de identificação, fazendo parte de um grupo não reconhecido pelo estado nos anos sessenta. Só que esse grupo teve filhos e netos, e hoje em dia há talvez trezentas mil pessoas (não se pode saber quantas são) que para o estado não existem e não têm qualquer direito — à escola, ao trabalho ou até a reconstruir as suas casas se caírem.
Não se pode falar destas pessoas a não ser que, em presença de um dignitário do governo ou do parlamento sírio, o nosso interlocutor se refira a elas primeiro.
Coisas de que se pode falar? Sendo português, os sírios sabem que Damasco foi a nossa capital, durante a dinastia Omíada, por volta do ano 750. E, tal como nós, quase todos têm primos no Brasil (os “turcos” das telenovelas são, na verdade, sírio-libaneses). E eu não gostaria de continuar sem registar que a Síria salvou o mundo de uma catástrofe humanitária quando generosamente recebeu mais de um milhão de refugiados iraquianos que fugiam às bombas ocidentais e à luta sectária. Na altura, teria sido fácil ao regime sírio dizer “esta guerra é um embuste, não temos de resolver o vosso problema” — e fechar as fronteiras. Teria sido uma tragédia.
Mas aquilo de que não se pode mesmo falar na Síria é no Presidente Bashir Al-Assad — em termos que sejam um pouco menos do que glorificadores. É apenas legítimo ser mais elogioso ainda para o seu pai Hafez Al-Assad, que morreu em 2000. Os retratos de ambos estão por todo o lado, e qualquer sinal de desrespeito pode ser severamente punido de acordo com a lei de emergência que esteve em vigor durante 40 anos, até ter sido há poucos dias. Milhares estão na prisão por terem dito o que não deviam.
Não é fácil sobrestimar a coragem dos milhares de sírios que hoje saem à rua — em Damasco, Aleppo e Homs, as cidades mais antigas do mundo — e rasgam cartazes de Bashir Al Assad (enfim; o Avante! até acha fácil subestimá-la, escrevendo sobre “agentes americanos” e sobre uma opinião pública “intoxicada”). Bashir Al Assad mandou os tanques para as ruas; mas o mundo de hoje não é o de Hafez, que em 1982 pôde varrer uma cidade de vinte mil habitantes do mapa. E se os sírios não se deixarem intimidar?
3 thoughts to “E agora, Síria”
Muito bom Rui e obrigado pela partilha sensorial, lá da Síria.
É impossível relativizar (pelos visto há quem o faça) o poder que detém e o temor que causa a figura de Bashir. Mas essa figura, talvez risível quando o sabemos ditador e quando o vemos com aquele ar envergonhado ainda que respeitável e com impecável corte de vestuário, deu ordem de prisão a uma jovem blogger de 19 anos por aparentemente apenas ter escrito livremente. 5 anos de cadeia! E claro, para os revestir de alguma legitimidade, mesmo para os inacreditáveis conceitos do regime sírio, atribuiu-se à jovem a qualidade de espia norte americana.
Vemos agora que talvez Bashir, tão falsamente conspícuo no aspecto, é bem capaz de ser dos piores ou o pior de todos os ditadores da região. O número de mortes de civis desarmados, simples manifestantes, é maior em proporção que me qualquer dos outros países em convulsão.
Espero uma vez mais e depois da Tunísia, Egipto, Líbia, Iémen, Bahrein, que também a revolta na Síria vá até ao fim, como aconteceu com aqueles dois primeiros países.
Aguardamos ansiosamente pelos próximos episódios políticos e cívicos na Tunísia e também no Egipto e que eles sejam promissorese inspiradores para restantes. Infelizmente a nova Constituição egípcia estará já enquistada em alguns aspectos importantes.
Ainda assim que valha a pena.
Vamos em Maio mas a figura do ano da Time quase de certeza que será o próprio mundo árabe ainda que preferisse ver em toda a capa a cara do vendedor de frutas de 26 anos que é a verdadeira ignição de tudo isto. Imortalize-se o mesmo.
(Escrevemos Bashir mas o correcto será Bashar. Bashir, Omar al Bahir, também é outro maléfico presidente, mas do Sudão)
Com todo o impacto mediático que as revoluções (no bom ou mau sentido) estão a ter, torna-se difícil distinguir a verdade da manipulação. Fico sentido com o mau jornalismo e com a falta de ética presente. A título de exemplo, um artigo que primeiro saiu na edição online do dito jornal, que falava num “activista da oposição síria”, o qual afirmava que tinham entrado tanques na cidade e certo número de civis teriam perdido a vida. Desde já notar que chamar “activista” não é o mesmo que dizer “membro da oposição”. Tem um carácter e evoca um contexto completamente diferentes. Mas o pior veio depois. No dia seguinte, exactamente a mesma notícia no jornal em papel, mas a palavra “activista” vinha substituída pela de “habitante” da cidade em questão. Passou-se de um sujeito parcial (mas do lado bom) para um imparcial.
Segundo, fico sentido que as pessoas engulam esta catadupa de notícias estranhíssimas – em termos jornalísticos -, bombardeadas a partir da Reuters ou da FP. Quase desde o início me começou a cheirar mal a história dos helicópteros contra civis… Para quê mandar helicópteros, se os civis estão desarmados? Esclareceu-me um pouco um artigo que li esta semana, no el pais ou no el mundo, sobre as empresas privadas de guerra (as têm no seu “menu” o mercenário certo para cada situação). Nesse artigo, um CEO dessas empresas dizia ter homens na Líbia. A fazer o quê? treinar membros da oposição. Para quê? Dinheiro e poder. As palavras são minhas, mas era esta a ideia, e não estou a ler nas entrelinhas, simplesmente ja nao tenho o jornal à minha disposição. Se um CEO admite isto, o que se passará por detrás das cortinas?