Idealizo um reinventar laços de solidariedade entre trabalhadores, entre gerações e pessoas diferentes.

Lisboa, 12 de Março de 2011

Sim, eu tinha prometido calar-me durante a quaresma. Mas o que aconteceu anteontem, no protesto da geração à rasca que juntou centenas de milhares de pessoas de todas as gerações em todo o país, foi especial — e necessita de um comentário especial.

A coisa mais interessante a descobrir é como se pode ir de três pessoas para trezentas mil sem pedir permissão a qualquer partido, sindicato ou associação. Não tenho dúvida de que qualquer destas organizações está agora a repensar a sua relação com a sociedade — e isso é bom, mas desde que dê aos partidos vontade de serem organizações mais democráticas desde o início.

Segunda coisa: um cartaz de ontem dizia “ninguém aqui votou na Merkel”. Na mouche: a União Europeia, tal como está, é um clube e não uma democracia. Aos olhos das pessoas, esse dado básico retira legitimidade às reformas que aí vêm, e com razão diagnostica a falência do atual discurso reformista. Até que uma nova relação de forças ou um novo pensamento tome conta de Bruxelas, das reformas só podemos esperar coisas contra nós.
A estratégia tradicional-revolucionária quando chegamos ao “estado a que chegámos” seria pressionar até à queda do poder, para que viesse aí um novo poder. Mas aí temos novo bloqueio: não tanto que o “novo poder” se arriscaria a ser pior do que o atual — mas que, passado o primeiro momento, as coisas voltariam a ser dirigidas de cima para baixo.
Há uma semana inventei uma palavra — à volta da ideia de “reformulação” — para descrever o que se estava a passar, definindo como tal a noção de um movimento que fosse democrático desde o ponto de partida e em cada um dos seus passos, e que tivesse como objetivo reformular de forma inclusiva o próprio país.
E dou por mim a pensar: o que faria agora um movimento reformulocionário, se existisse?
Passemos das coisas interessantes às importantes. A mais importante das que saiu de sábado é muito simples: a ideia de que podemos contar uns com os outros.
Pois bem, qual seria o próximo passo desta ideia simples? Idealizo um: reinventar laços de solidariedade entre trabalhadores, entre gerações e pessoas diferentes.
É interessante, por exemplo, que movimentos como os Precários Inflexíveis e os Fartos d’Estes Recibos Verdes (FERVE) protestem e denunciem. Mas sabem o que seria verdadeiramente importante? Que eles tivessem força para pôr em tribunal as grandes empresas que violam reiterada e massivamente as leis de trabalho neste país.
E sabem de onde poderia vir essa força? Dos milhares de jovens advogados precários e desempregados neste país.
Mesmo isso seria apenas o início. E se as organizações de recibos verdes, engrossadas de milhares de novos membros, se mutualizassem para prestar auxílio numa das coisas que mais assusta o precário — os riscos de saúde? E se começassem a surgir por esse país cooperativas de creches que dessem segurança aos jovens casais que querem ter filhos? E se metêssemos neste jogo as associações de imigrantes, que são provavelmente os mais precários dos precários? Aí talvez começássemos a falar.
Não tenho ilusões. Numa economia globalizada, assente em coisas como computadores e aviões a jato, o que pode o neomutualismo é sempre de natureza limitada. Mas o objetivo aqui é reinventar o princípio da solidariedade de uma maneira que a política institucionalizada não pode — e que, no caso da União Europeia, manifestamente não quer. Para participar, as pessoas precisam de razões para acreditar. E depois de sábado, vão precisar delas mais do que nunca.

8 thoughts to “Só mais uma coisinha

  • Pony

    Muito interessante o teu post. Levanta algumas soluções e caminhos e é precisamente isso que precisamos agora, depois de saber que contamos uns com os outros: ideias práticas para agir.

  • Sandro Marques

    Ainda bem que a Quaresma tal como o Carnaval pode ter apenas três dias. Posso sugerir uma ideia. Por forma a reinventar o espírito de solidariedade, vale a pena ver o que fizeram os argentinos durante a sua última crise. As redes de solidariedade conseguiram eliminar o factor dinheiro numa ampla rede de mutualismo entre os cidadãos. Poruq não tentar? A nova classe social, o Precariado não perdia nada.

  • helena soares

    Essa ideia do apoio de advogados precários seria particularmente interessante no que diz respeito à infracção de leis laborais (despedimento de grávidas, despedimento sem justa causa e sem indemnização, etc). O que vejo à minha volta é que as pessoas não põem estes casos em tribunal e, portanto, isto não muda. Mas atenção, não é à toa que as pessoas não protestam. Há medinho, há pressão social e de classe. O meu caso: estava a trabalhar há 3 anos numa revista, 15 dias por mês, a recibos verdes. A revista foi extinta e de um dia para o outro fiquei sem emprego e não me quiseram indemnizar. Fiquei revoltada. No círculo de colegas, a primeira coisa que me disseram foi que um advogado era muito caro. Falso: ganha uma percentagem sobre a indemnização. A segunda: que eu me ia lixar porque mais nenhum meio de comunicação social me ia contratar se eu pusesse aquele em tribunal: “eles estão todos feitos uns com os outros, conhecem-se todos” (falso, também). O advogado disse-me “mas isto é tão pouco dinheiro (uns 3000 euros, pra mim muito dinheiro), vai querer andar em tribunal por isto?” Estão a ver o que significa esta pressão quando eu estou a querer processar uma multinacional e os seus advogados? É preciso muita determinação e muito apoio para ir para a frente em vez de nos deixarmos convencer de que estamos maluquinhos só porque achamos que temos direito a fazer valer os nossos direitos. Este tipo de apoio faz muita falta ao indivíduo isolado que defronta uma empresa e faz muita falta à nossa sociedade, para mudarmos, para estas transgressões deixarem de passar impunes. (E sim, ganhei a minha indemnização, só com advogado sem nunca ter de ir a um tribunal (brrr) por uma razão simples: eu tinha razão)

  • Bruno

    Muito obrigado Rui por ter quebrado o seu momento de reflexão para nos dizer algo tão lúcido e inovador. Concordo com o que diz e a manifestação que em conjunto com outros organizo na plataforma facebook tem como nome “geração da esperança” e os tópicos que aponta são um passo para evoluirmos duma sociedade de protesto para uma sociedade de esperança trabalhada. Queremos uma sociedade que inclua a todos, queremos reunir no dia 26 homens, associações, movimentos, religiões que se destaquem pelo serviço ao bem comum e com provas dadas na sociedade civil neste tempo de crise. Queremos que nos falem da esperança que experimentam na sua vida. Pedia que visitasse a nossa iniciativa e nos ajudasse com a sua critica construtiva. Obrigado

    link: http://www.facebook.com/event.php?eid=183063725071489

  • Maria João

    Rui, concordo com tudo. Belas ideias. É isto que é preciso: imaginação e determinação. E espírito político, porque nada disto se consegue sem “ânimo” político. O que é bom e mau ao mesmo tempo.
    Mas é isto, é mesmo isto.

  • Pedro

    Fico feliz por saber que há gente que ainda tem esperança! Porque eu já não tenho nenhuma…

  • António

    Caro Rui, para um mutualismo mais localizado e voluntário, alternativo ao imposto pelo centralismo de Estado, seria preciso acabar com a obrigatoriedade deste último. A protecção social estatal é claramente paternalista e não permite liberdade de escolha, ou mesmo exclusão. Então a sociedade não era pacto?

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