A história acelera; as respostas chegam quase antes de termos imaginação para fazer as perguntas. Qual é a próxima Tunísia? O Egito. Quanto tempo demorou? Menos de duas semanas.
Ainda estávamos a considerar a hipótese de uma revolta civil num país árabe e já Ben Ali tinha apanhado o avião. Ainda os comentadores ocidentais se entretinham com a eventualidade de o exemplo tunisino ser seguido e já havia levantamentos na Jordânia, no Iémen, e no Egito. E agora eis-nos seguindo pela Al-Jazira um vasto movimento de desobediência civil neste último país. E já o líder da oposição, Mohamed el Baradei, fala aos cairotas: não vamos voltar para trás.
Nos últimos dias houve quem se lembrasse de uma velha história que se contava na Europa de Leste: “a revolução na Polónia demorou dez anos, na Hungria dez meses, na RDA dez semanas, e na Checoslováquia vai demorar dez dias”. Nenhuma analogia é perfeita: em vez de avançar progressivamente, a revolução saltou de um país sui generis como a Tunísia para o coração do mundo árabe. Chegada ao Egito, a parada é altíssima e já ouvimos todas as alternativas: um banho de sangue ou um colapso do regime, ou ambas as coisas, ou até uma ditadura islâmica.
Nesta fase do campeonato ninguém pode estar certo de muita coisa, mas a isto eu tenho vontade de dizer: deixem-se de tretas. A sucessão frenética de acontecimentos não é desculpa para a desorientação.
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É desencorajador ver as chancelarias ocidentais procurando conhecer melhor a biografia de Omar Suleiman, o novo vice-presidente. A resposta já foi dada pelos egípcios: Omar Suleiman é o passado, e vocês conhecem-no bem. Omar Suleiman foi o homem que com a administração Bush tratou de sequestros, prisões secretas e tortura. É o rosto da cumplicidade com as apodrecidas ditaduras do médio oriente em troca de petróleo, estabilidade e repressão. Omar Suleiman é um daqueles peritos em manipular o medo ocidental com o fundamentalismo islâmico enquanto embolsa biliões de dólares em “ajuda” militar. Que há para conhecer que não saibamos já?
Washington hesita, em vez de desligar a ficha a Mubarak de uma vez por todas. Tel Aviv preocupa-se, porque lhe dava jeito ter aquela ditadura ali ao lado. E Bruxelas — quem se rala?
Aliás, quem se rala com esta gente? Por estas horas, só vale a pena perder tempo com Mohamed El Baradei, o tipo de líder por que o ocidente sempre disse suspirar e que, agora, no momento crucial, não se consegue decidir a apoiar. El Baradei tem, nos últimos dias, dado mostras das capacidades essenciais neste momento: liderança e sentido de tempo. Regressou ao Egito para participar nos protestos. Nos últimos dias esteve silencioso, dizem alguns que em prisão domiciliária. Quando reapareceu, tinha obtido de cinco movimentos da oposição egípcia — incluindo a Irmandade Muçulmana — o mandato para negociar um governo de unidade nacional. Só nesse momento se dirigiu ao povo e quando o fez foi para para selar o contrato com as suas aspirações: ninguém vos vai roubar o que já conquistaram.
Diplomata experiente, cordato mas inflexível defensor do primado do direito internacional e dos direitos humanos, secular mas respeitado entre os muçulmanos pela sua oposição às manipulações de Bush antes da guerra do Iraque, El Baradei é o homem certo no momento certo e tem de ser apoiado quanto antes para que organize a transição e prepare eleições justas. É evidente que os egípcios não vão confiar num governo dirigido pelo chefe dos serviços secretos para quem neste momento só deve haver uma mensagem: entregue o poder.
Publicado no Jornal Público no dia 31 de Janeiro de 2011
3 thoughts to “Jogo Alto”
Acho estranho que, sendo o RT alguém que se identifica filosoficamente com o anarquismo, deposite as suas esperanças num caudilho, depois de todas as animadoras demonstrações de auto-organização com que o Egito nos brindou. Não será hora de apoiar outras medidas que não esperar que o D. Sebastião faça a transição?
Muito bem!
Pode ser que venha a ter que me arrepender do que vou escrever, mas, por agora, tenho que o fazer: isto é o início da 5ª vaga (de democratizações)! Viva!
(Deixo para mais tarde o comentário ao silêncio prolongado de Bruxelas, no início da revolução tunisina… Não sei porquê a Baronesa Ashton faz-me sempre recordar a velha máxima de acordo com a qual “o silêncio é a língua materna das diplomacias que não têm nada para dizer…”)
Agora o que interessa é tudo fazer para que as transições se façam sem sangue e inaugurem um ciclo de respeito pela vida das pessoas, das suas necessidades, aspirações e projectos de futuro!
Viva a chegada do mundo árabe à democracia – essa sim, a grande utopia que perdurou, depois da queda de todas as outras…
Caríssimo Rui Tavares
É confrangedor ver a miséria a que chega o seu pensamento. El Baradei só pode ser o homem certo no momento certo para a Casa Branca, que quer a todo o custo manter intacta a arquitectura que construiu no Médio Oriente. A única coisa que o Ocidente tem que exigir (e já agora, também pessoas de esquerda com alguma responsabilidade) é que Mubarak se vá embora. Os egipcios já mostraram que são bem capazes de se governar e certamente não precisam de mais intervenção estrangeira.