Se houver abuso de algum destes dados, não pensem que a lei americana nos protege, uma vez que o Privacy Act só protege cidadãos americanos e residentes nos EUA.
Já não me lembro de há quanto tempo não escrevo uma crónica minimamente otimista. E, acreditem, isso não é melhor para mim do que para vocês. Mas se o otimismo se funda em saber que a sociedade tem recursos suficientes para superar os seus problemas, afunda-se quando vemos que passámos os últimos tempos a agravá-los. Três casos.
1. Dizer “isto é o regresso da censura” é, muitas vezes, uma hipérbole. Porém, o governo húngaro pretende implementar uma lei que é — e eu, por causa das coisas, quase nunca uso a expressão — o regresso da censura.
Segundo esta lei a imprensa está sujeita a multas que vão até 700 mil euros — que terão de ser pagas antes de recurso aos tribunais, o suficiente para levar à falência a maioria dos títulos — por “falta de objetividade” ou “falta de equilíbrio” nos seus artigos.
E quem decide o que é falta de equilíbrio? Uma comissão, nomeada por nove anos, cujos membros pertencem ao partido do governo. Em certos casos, esta comissão pode proibir programas ou ver artigos antes de publicação.
É claro que um país com uma tal lei de imprensa não seria nunca admitido na União. Mas agora que está cá dentro, pode até presidir a ela, como é o caso da Hungria desde 1 de janeiro deste ano.
2. O ministro Rui Pereira negociou com os EUA um acordo para lhes ceder informações constantes dos nossos Bilhetes de Identidade, incluindo dados biométricos — no quadro da luta contra o terrorismo. Mas tanto quanto se consegue perceber (o texto do acordo não é conhecido) estamos a falar de todos os cidadãos, 99% dos quais são inocentes.
Se houver abuso de algum destes dados, não pensem que a lei americana nos protege, uma vez que o Privacy Act só protege cidadãos americanos e residentes nos EUA. Para tentar colmatar esse problema, a UE está a negociar um acordo-quadro de proteção de dados com os EUA. Mas por causa da extraordinária pressa do senhor ministro em ter um acordo bilateral, os portugueses arriscam-se a ficar sem as proteções que esse acordo-quadro dará aos outros europeus. E, como bónus, a posição negocial europeia leva um rombo.
Não há nada mais extraordinário, contudo, do que ler o ministro defendendo a bizarra concepção de reciprocidade que crê existir no acordo: nós enviamos os dados dos nossos cidadãos e os americanos mandam-nos, quando for caso disso, pistas policiais. Senhor ministro, façamos assim: dê-me um porco e eu dar-lhe-ei, quando me apetecer, um pedaço de chispe. E chamemos-lhe reciprocidade.
3. Tudo isto, por triste ou amargo, empalidece junto do que está a acontecer no Médio Oriente. Os ataques a cristãos e a outras minorias ameaçam comunidades que há milénios vivem em países como o Egito e — muito especialmente — o Iraque.
Pois é no Iraque que os ataques inter-religiosos têm sido constantes, mortíferos, ininterruptos contra cristãos, sabeus, assírios, sunitas em bairros xíitas e o contrário.
Pergunte-se a um cristão iraquiano quando isto começou e a resposta será: com a vossa estúpida invasão do Iraque. Aqueles que, no Ocidente, defendiam a guerra entre valores ocidentais e islâmicos eram, na mais das vezes, tão ignorantes que não faziam ideia que o Iraque era um mosaico de religiões. E são hoje tão cegos que não se vê pressionarem os seus governos para aceitar os refugiados iraquianos que esperam e desesperam nos campos. Sabemos que o grande efeito desta guerra foi fortalecer o Irão. Mas, colateralmente, ainda vão conseguir acabar com os cristãos do oriente.
Bem vindos a 2011. Bom ano e boa sorte.
2 thoughts to “Um saco de mágoa”
É… Não há, por estes dias, quem consiga ser Pangloss.
Nem sequer na versão gramsciana moderada do “ser pessimista com a inteligência e optimista com a vontade”…
Concentremo-nos por um momento no Acordo assinado e negociado pelo Ministro seu homónimo.
Vou dispensar-me de criticar a substância: faltam-me os adjectivos para qualificar um instrumento que é tão inconstitucional que consegue violar duma assentada três direitos fundamentais – o direito à privacidade, o direito à protecção dos dados pessoais e o direito à autodeterminação informacional – e um princípio do estado-de-direito, – o da presunção da inocência – ao permitir a transmissão das nossas impressões digitais a um registo de dados criminal, quando, de boa-fé, os cidadãos portugueses apenas aceitam fornecê-las a um registo de dados civil.
Perguntemo-nos, então: “mas como é que o Ministro conseguiu negociar e assinar tal Acordo, um Acordo que, repita-se, contende com o núcleo duro de direitos fundamentais tão importantes, sem que ninguém soubesse? Sem que nenhum outro órgão de soberania representativo do povo português – designadamente a Assembleia da República – fosse chamado a pronunciar-se, ao menos através de “parecer” da sua Comissão sobre Direitos, Liberdades e Garantias?” Como foi isto possível se a matéria é tão grave que, para melhor proteger a “privacidade” da história pessoal dos cidadãos, em Portugal, é inconstitucional atribuir um leviatânico número único às pessoas?
Para responder, vamos voltar a falar o “constitucionalês” da moda que já exercitámos a propósito do silêncio de Cavaco Silva.
Se esta matéria estivesse a ser objecto de um acto legislativo interno, ela teria forçosamente que ter passado já pelo crivo da Assembleia da República. Com efeito, trata-se de matéria de competência reservada do Parlamento que, mais concretamente, faz parte do âmbito de matérias da “reserva relativa” deste órgão. Tal significa que o Executivo só pode legislar sobre ela depois de devidamente habilitado por uma Lei de Autorização da Assembleia da República, conforma resulta do artigo nº 165 nº 1 alínea b) da CRP. Essa autorização tem, aliás, que definir claramente o seu objecto e sentido, a sua extensão e duração, conforme impõe o nº 2 do mesmo artigo.
Só que… a matéria não foi aqui objecto de um “acto legislativo interno”, mas de um “acordo internacional” entre dois Estados. E, infelizmente, a nossa CRP prevê no artigo 197º nº1 alíneas b) e c), de forma circular, o seguinte: “Compete ao Governo, no exercício de funções políticas: b) Negociar e ajustar convenções internacionais; c) Aprovar os acordos internacionais cuja aprovação não seja da competência da Assembleia da República ou que a esta não tenham sido submetidos”.
O que significa que: 1) ao contrário do que acontece nos sistemas parlamentaristas puros, como o Alemão, o Governo não precisa de uma “autorização prévia” da Assembleia para ajustar convenções internacionais. Até aqui, nada de demasiado grave, – embora a opção seja discutível – uma vez que se aceita que a condução geral da política externa cabe ao Governo que dimana da Assembleia. O problema é que isto significa também que 2) ao definir pela negativa os acordos que cabe ao Governo aprovar – os que não são da competência da AR ou que a esta não tenham sido submetidos – a CRP deixou, na prática, por resolver, quais, os tratados que têm sempre que, “a posteriori”, ser sujeitos a controlo e aprovação parlamentares.
Com efeito, de acordo com o art. 161, alínea i) só é certo que “à AR cabe aprovar os tratados de participação de Portugal em organizações internacionais, os tratados de amizade, de paz, de defesa, de rectificação de fronteiras e os respeitantes a assuntos militares, bem como os acordos internacionais que versem matérias da sua competência reservada ou que o Governo entenda submeter à sua apreciação”.
Mas não desesperemos: apesar de tudo, este artigo guarda para a AR a aprovação de acordos que versem matérias da sua competência reservada e este é seguramente o caso do Acordo em apreço, como vimos.
Resta-nos, por isso, esperar que o Parlamento faça o seu trabalho, em vez de se limitar a funcionar como um “selo de borracha” e questione a conformidade deste Acordo à nossa Constituição e também a sua “oportunidade política” em face dos desenvolvimentos na matéria no âmbito da UE. Todavia, advirta-se, não é isso que normalmente tem acontecido: sucessivos executivos de Portugal têm negociado tratados de extradição, de transferência de pessoas condenadas, etc. , etc… sempre com a aquiescência aproblemática da Assembleia da República….
O mesmo se diga a respeito da intervenção final do Chefe-de-Estado – também ele democraticamente eleito – em todo o processo de vinculação internacional de Portugal a convenções como esta. É que, se aceitarmos que se trata de uma convenção no âmbito do mencionado art.161º, alínea i), ela tem, depois, ainda que ser sujeita a ratificação pelo Presidente (art. 135º, alínea b)) que pode, ele próprio também, accionar os mecanismos de fiscalização preventiva da constitucionalidade (art. 278º, alínea b)), de modo a garantir que ela respeita todos os direitos fundamentais mencionados… só que isso também nunca aconteceu.
(Note-se que, quando está em causa legislação interna, por contraste, o pedido de fiscalização preventiva da constitucionalidade por parte do Presidente é recorrente, assim como o veto.)
Na prática, o Governo age, pois, livre dos “freios e contrapesos da AR e do PR” quando resolve, na esfera internacional, negociar acordos que afectam os nossos direitos.
Um sistema a aperfeiçoar, exigindo uma discussão séria sobre a “praxis” no âmbito destes procedimentos, mas também sobre o sistema formalmente acolhido para o efeito pela Constituição que pode e deve ser aperfeiçoado, porventura com a introdução de um mecanismo de “consulta prévia” ao Parlamento, sempre que o Governo se apresta a negociar convenções internacionais em matéria de direitos humanos básicos.
“Et pour cause”… Ora aqui está uma “revisão necessária”, em vez de quererem tirar da Constituição o que ela tem de bom – o catálogo de direitos económicos, sociais e culturais, à cabeça…
Relativamente ao famoso mundo da informação e contra informação que vivemos actualmente, em que as noticias da manhã são tragadas logo na viragem da tarde se isso der jeito, não surpreende que andem já a trabalhar para traçar um perfil em base de dados (não dizem que a realidade está a superar a ficção)dos concidadões do mundo.
Este é o sonho dos homenzinhos do poder. Matrix realidade ou ilusão?
A propósito do relato do ministro Rui Pereira, que antes de o ser, aparentemente parecia inteligente para não trocar saber por poder, gostaria de deixar um pequeno aparte.
Num dos noticiarios televisivos, à algum tempo atrás, verifiquei que uma pessoa conhecida, por sinal Anestesista de um hospital do Porto, não se importou de dar a cara(poucos colegas dele teriam a coragem) de relatar que um familiar dele tinha sido preso ao chegar de avião proveniente de Lisboa, ao Aeroporto de JFK. Foi sujeito a um interrogatório militar durissimo de várias horas, estava na lista negra das autoridades americanas como possivel terrorista ligado a famosa A e tem ai um Q pelo meio(não gosto dos filtros da internet por palavra chave). Tudo isto porque conforme explicou o referido médico, costumava brincar nas mensagens telefónicas, chamando-o de B e tem para ai um i e n também, seguido do nome do familiar. Na reportagem televisiva quem deu a cara interrogava-se como seria possivel que tal informação tivesse sido colhida pelos nossos amigos americanos, se ela foi passada dentro de uma rede portuguesa e com operadoras portuguesas. Depois disso, em que o respeitado anestesista, tentou levantar uma lebre que nenhum orgão de informação pegou, só nos resta abrir o saco e calmamente ir acomodando. Isto porque de revoluções de ideias e outras,estamos conversados, ou seja temos a revolução da natureza, e essa não é para brincadeiras…