O problema é quando o segredo se torna a regra e não a exceção, como demonstram os documentos até agora divulgados pela wikileaks.
“Vastos ataques por parte de uma China que tem medo da internet”. Este era o título do New York Times na passada sexta-feira.
No seu contexto, vale tudo o que se tem dito nos últimos dias sobre a wikileaks, cujos documentos — ironicamente — o New York Times usava para narrar a repressão chinesa, em 2009, contra o google.
Nesse mesmo dia um poderoso senador americano exigia que todas as companhias do seu país cessassem contactos com a wikileaks. Extraordinariamente, elas obedeceram. A Amazon tirou a página da wikileaks da rede. Outra empresa abateu-lhe o endereço. Outra ainda apagou “as visualizações de dados” — gráficos e não documentos classificados — que se encontravam no site. Seguiram-se ataques informáticos em massa. A wikileaks desapareceu. Umas horas depois reapareceu na Suiça, depois sumiu, apareceu de novo, e continua intermitente.
O Departamento de Estado dos EUA proibiu os seus funcionários de consultarem o site, mesmo que a partir de casa. Segundo a Universidade de Columbia, notificou estudantes para que não citassem a wikileaks nas suas páginas de twitter ou facebook, se quisessem preservar as hipóteses de um dia conseguirem emprego na administração. A Biblioteca do Congresso impediu o acesso à wikileaks a partir dos seus computadores.
(Na Europa, um ministro francês declarou inaceitável que a wikileaks pudesse alojar-se na França. Ao menos neste caso, a empresa francesa a que ele se referia respondeu de forma digna: senhor ministro, queixe-se a um juiz.)
Em poucos dias passámos da desvalorização — “isto não tem nada de novo” — ao mais vasto ataque por parte de governos que têm medo da internet. A China é aqui? Esse é o nosso teste.
E, no entanto, ninguém parece notar uma coisa simples: a cultura de secretismo faz mais mal do que bem.
Há segredos justificados e/ou necessários: a posição de tropas em tempo de guerra, a identidade e localização de fontes, e alguns dados sobre as vítimas ou testemunhas de crimes. O problema é quando o segredo se torna a regra e não a exceção, como demonstram os documentos até agora divulgados pela wikileaks.
Vamos recapitular algumas das coisas que já aprendemos: que os diplomatas americanos tinham ordens para recolher dados pessoais e biométricos dos dirigentes das Nações Unidas (uma violação à Convenção de Viena de 1961); que havia um “espião” dentro do governo de coligação na Alemanha, — que aliás já teve de se demitir; que o governo alemão foi pressionado com ameaça de retaliações políticas para que abandonasse o caso de um desgraçado merceeiro que foi preso e torturado por agentes secretos americanos, estando inocente de qualquer crime; que a procuradoria-geral espanhola foi pressionada num caso semelhante, e para limitar as ações do juiz Garzón.
Há mais; e só foram disponibilizados menos de mil documentos de entre os 250 mil totais. Os restantes 99,5% estão a ser tratados por cinco dos mais prestigiados jornais internacionais. As autoridades americanas tiveram oportunidade de fazer comentários e correções (e, no caso do New York Times, fizeram-no). Ao contrário do que dizem aí, isto não é vandalismo. A wikileaks publica o resultado do trabalho que esses jornais têm feito, com a edição e correção entretanto feitos.
Há justificação para que estes segredos em particular fossem ocultados dos cidadãos? Não há; e o facto de o terem sido só torna a democracia malsã e a diplomacia cúmplice.
3 thoughts to “O nosso teste”
Caro Rui,
Apesar de ser um leitor assíduo deste blog, nunca comentei, talvez por ser mais geração TV do que geração net.
Relativamente ao wikileaks, ao contrário do habitual, tenho uma visão ligeiramente diferente da sua: não acredito na virtude da verdade e, muito menos, na revelação de tudo. Na verdade pode não conhecer nenhum jornalista que não ficasse doido por uma citação do rei saudita chamando ao Irão “a cabeça da serpente” mas isso não foi uma citação mas uma conversa privada (corrija-me, por favor, se estiver errado). Viver em sociedade implica diversas regras, não se pode exprimir tudo o que se pensa, sem que isso se transforme em censura.
Porventura por ser cioso da minha privacidade (aí concordo em absoluto com a sua posição relativamente aos dados SWIFT) acredito que os estados e seus funcionários teriam também direito à sua privacidade, a menos que estejam em causa ilícitos, por exemplo publicar a lista de “infra-estruturas vitais” localizadas em vários países que os Estados Unidos querem proteger não me parece aconselhável.
Quanto à pressão exercida para encerrar o wikileaks espero que passemos esse teste. Infelizmente existiram outros testes bem mais importantes que foram claramente reprovados.
Cumprimentos,
Caro Rui,
Ao princípio parecia que a montanha tinha parido um rato e muitos se apressaram a afirmar a irrelevância da informação contida nos documentos e na dano à diplomacia das democracias ocidentais. No entanto, as reacções dos governos, principalmente o dos EUA, vieram demonstrar que não se tratavam de meras trivialidades e que o ataque ao site e ao seu fundador acabam por corroborar.
Chama a atenção para a petição lançada pela ONG AVAAZ (http://www.avaaz.org/en/wikileaks_petition/97.php?cl_tta_sign=51b25ee6843b3dd1cb8fc38a3a6f96b2) de que trancrevo um excerto: “Reasonable people can disagree on whether WikiLeaks and the leading newspapers it’s partnered with are releasing more information than the public should see. Whether the releases undermine diplomatic confidentiality and whether that’s a good thing. Whether WikiLeaks founder Julian Assange has the personal character of a hero or a villain. But none of this justifies a vicious campaign of intimidation to silence a legal media outlet by governments and corporations.”
Saudações.
“A ocultação destas informações torna a democracia malsã e a diplomacia cúmplice.”
Isso mesmo, Rui: sem tirar, nem pôr.
Os documentos da “wikileaks” expõem duas dimensões em que se joga a conduta estadual, na esfera internacional.
A primeira dimensão é a ético-normativa ou, se preferirmos ser mais positivistas, é a do “corpus” jurídico internacional consagrado à protecção dos direitos humanos.
Com efeito, mais do que uma violação da Convenção de Viena de 1961, as ordens dadas pelas chefias políticas aos diplomatas para recolher amostras de ADN dos dirigentes da ONU, entre outras, são ordens para cometer um acto ilícito: eu diria que configuram um caso de “autoria moral” na violação do direito fundamental à privacidade, consagrado por todos os Tratados Internacionais de protecção dos direitos humanos (o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, a Convenção Europeia dos Direitos do Homem, etc.) e pela generalidade das constituições do mundo ocidental (incluindo pela jurisprudência constitucional norte-americana). A sua violação é punida, em muitas ordens jurídicas, não apenas civilmente, mas também penalmente.
Ainda neste plano, as pressões para que a chancelaria alemã abandonasse o caso do seu cidadão preso e torturado são ainda mais graves: autoria moral do crime de tortura, tratamento cruel, desumano ou degradante, violação do art.3º comum às quatro Convenções de Genebra de 1949 (por não lhe ter sido reconhecido o estatuto de “não-combatente”, com a consequente denegação do direito a um processo judicial justo e equitativo), etc.
Além disso, um desabafo: constituem também a perversão do sentido último para a subsistência histórica da diplomacia: a protecção dos nacionais de um Estado. É por isso e para isso (e não para outra coisa) que esses emissários especiais de um país que são os diplomatas gozam de imunidade judicial no exercício das suas funções em posto.
Até aqui, portanto, a “wikileaks” revelou-nos “um esgoto a céu aberto”.
A segunda dimensão, é a da política ou a da geopolítica pura e dura. E aqui, sim, as verdades reveladas não são, de facto, novidades. (Que ingénuos “Serafins” é que ainda acreditavam que o desejo de todos os Estados soberanos é, como para as finalistas do concurso da “Miss Universo”, a “paz no mundo”?)
No entanto, o que aqui é relevante é que, em democracia, os cidadãos têm um direito fundamental de acesso à informação sobre o modo como são governados, sobre as opções que os eleitos fazem em seu nome. É, aliás, esta sujeição do governo à “publicidade crítica” que garante a continuidade democrática numa legislatura, para além do momento em que estamos a depositar o voto em urna, permitindo aos cidadãos conhecer, julgar e contestar as medidas tomadas em seu nome.
E este “droit de regard” sobre o processo decisório ao nível governativo tem que ser válido, tanto no plano da “soberania interna”, o da decisão directa sobre as grandes opções políticas e socioeconómicas de uma sociedade, como no plano “da soberania externa” que é o da interacção internacional do estado – para usarmos as categorias conceptuais teorizadas por Jean Bodin, no século XVI.
Em último termo, um exercício democrático da “soberania externa” exige não apenas a possibilidade de escrutínio público de todas as decisões em matéria de política internacional, mas também que o “segredo diplomático”, a existir, seja admissível apenas temporariamente e por razões prementes que relevam não de um manipulável (e às vezes inventado) “interesse nacional”, mas da protecção ingente dos direitos fundamentais de uma parte considerável dos cidadãos de um país. Ora, tal verifica-se apenas em situações muito contadas, com a de um conflito armado, por exemplo.
Em tempos de vida democrática normal, portanto, o cidadão tem que poder conhecer as decisões e o modo-de-agir dos seus representantes, no plano externo, como tem que poder conhecer as leis fiscais que o obrigam ao pagamento de impostos. Suspeito, por isso, que o “princípio do arquivo aberto e do acesso à informação” em diplomacia não tardará a ser uma legítima reivindicação das sociedades abertas e interdependentes da era da globalização.
Por fim, um comentário à dimensão política das revelações: “a verdade liberta” e, por não serem novidades, as verdades reveladas pela “wikileaks” não serão, contudo, menos libertadoras…
Assim, por exemplo, e “a benefício de inventário”: quanto mais cedo confirmarmos nos telegramas das embaixadas australianas a “realpolitik” de Camberra relativamente a Timor-Leste, nos telegramas das embaixadas brasileiras, – só para dar um exemplo e voltando à sua “Petrofonia”, Rui, – a posição do Itamaraty sobre a adesão da Guiné Equatorial à CPLP e, por fim, nos telegramas escritos em mandarim, a denegação de todas as medidas tendentes a introduzir progressivamente o sufrágio universal em Macau, tenho a ligeiríssima impressão de que se pouparão muitas cãibras no rosto dos diplomatas portugueses. Poderão, enfim, pelo menos perante estes três interlocutores e quanto a estas questões, parar de afivelar o proverbial “sorrisinho amarelo”, – (não resisto a transcrever a equivalência inglesa, – “a shit eating grin”- que é maravilhosa!) a que tantas vezes são obrigados profissionalmente.
Bem-haja, Rui, aqui pela sua consistência em prol da defesa do direito à informação de todos os governados quanto à actuação dos seus governantes. Pessoalmente, não me resignarei a aceitar que “à noite, todas as diplomacias sejam pardas”.