Se as autoridades escolherem não usar já a indignação popular, será apenas para demonstrar sentido de responsabilidade agora e cobrar o preço mais tarde.
Praça Taksim, Istambul, Turquia —. Não deve haver muitas cidades no mundo onde se possa ir à manifestação islamista e depois beber um copo nos bares da moda. Em Istambul, a semana passada, pude fazer ambas as coisas no mesmo bairro.
Na manifestação entrei distraído no setor onde estavam as mulheres devotas. Um rapaz chamou-me a atenção e, com firme cortesia, fez-me sinal para me juntar aos homens. Eles estavam em frente ao palco segurando uma enorme bandeira da Palestina. Na tela em frente eram projetados filmes sobre a faixa de Gaza. Se passava a imagem comovente de uma criança ferida, por exemplo, a multidão exprimia-se lamentosa. “Allahu akbar, Allahu akbar”, como num gemido coletivo. Nos momentos de maior indignação o mesmo “Allahu akbar!” saía de uma vez só, troado por milhares de gargantas ao mesmo tempo. Uma explosão de adrenalina.
Mas isto não é só uma manifestação de islamistas.Um pouco mais afastados há casais de jovens namorados, mulheres sem véu, homens barbeados — ou seja, a normal diversidade de uma multidão turca. E nas ruas que daqui saem, enchendo os bares, as pessoas não estão menos indignadas com o ataque israelita a barcos turcos. Todos asseguram que Israel cometeu um grave erro. Todos fazem questão de dizer que a Turquia não é o mundo árabe — aquele “Allahu akbar”, ou “Deus é Grande”, é mesmo a única frase em língua arábica que se ouve aqui — e dizem sobretudo que a Turquia não é o Irão — que está estranhamente silencioso depois do ataque israelita, porque vai fazer um ano das eleições que Amahdinejad roubou e ao regime iraniano não dá muito jeito convocar manifestações nesta altura —. Em Istambul as manifestações não param; no dia seguinte passará aqui outra, entre as lojas de piercings e tatuagens e as discotecas. Desta vez são universitários com uma bandeira pacifista em arco-íris e pinta de ocidentalizados. As raparigas com véu são aqui uma minoria. A sociedade turca, dividida em tanta coisa, está nisto unida. Se as autoridades escolherem não usar já a indignação popular, será apenas para demonstrar sentido de responsabilidade agora — e acordo com o seu estatuto de membros da NATO, candidatos à UE e potência regional em ascensão — e cobrar o preço mais tarde.
Palácio de Justiça de Beşiktaş, Istambul, Turquia. — Vim para assistir ao julgamento de um sindicalista e académico chamado Murad Akincilar, que foi preso pelas mais espúrias das razões (dois artigos numa revista legal e uma impressão digital na capa de um livro que foi achado em casa de uma acusado de terrorismo). Os nove meses que foi forçado a passar na prisão não o trataram bem. Fez um descolamento de retina em cada um dos olhos, ficando praticamente cego do olho direito. Entre os outros acusados, há gente presa por razões igualmente ridículas. No entanto, um dos quatro juízes dormita. Outro dorme profundamente durante toda a sessão e ainda tem a coragem de votar contra a libertação de quatro dos acusados. Felizmente, um voto vencido. Murad voltou a respirar a liberdade. A sua mulher, uma curda que também já esteve presa por “independentismo”, vai ansiosa buscá-lo à prisão. Esta história terminou feliz, mas ainda há guerra no curdistão, partidos ilegalizados, e metade de Chipre ocupado.
Sim, a Turquia tem plena consciência da sua importância. Espero que tenha também consciência dos seus telhados de vidro.