O que fez a “justiça” foi pegar numa coisa que parece corrupção, se comporta como corrupção, fede e tresanda como corrupção – e dizer que está tudo bem.
Se houvesse alguma coisa engraçada para dizer sobre dois episódios recentes da vida portuguesa, eu juro que tentaria lembrar-me dela. Eu tentei, aliás; seria agradável ter alguma espécie de alívio cómico no meio do que prometia ser uma crónica amarga. Mas quanto mais me forçava a pensar no que escrever, mais angustiado fiquei. Agora desejo apenas terminar e enviar o texto.
O primeiro episódio é a absolvição de Domingos Névoa no “caso Bragaparques”. Como se lembram os leitores, Domingos Névoa foi a primeira pessoa apanhada em flagrante a tentar comprar um político para que este mudasse a sua posição num negócio de imobiliário muito vultuoso. Os factos foram provados pela investigação e comprovados pelos tribunais.
Num primeiro passo, a “justiça” multou-o num montante ridículo, muito abaixo do que ele esteve disposto a pagar ao vereador em causa, José Sá Fernandes, e uma fração insignificante daquilo que Domingos Névoa teria a ganhar com o negócio. Num segundo passo, a “justiça” multou Ricardo Sá Fernandes, irmão do vereador e denunciante do caso, por ter chamado “corrupto” a Domingos Névoa, imagine-se: chamar-lhe aquilo que fora provado que ele era. Mas isso era antes do desfecho: num terceiro passo, a “justiça” ilibou Domingos Névoa por considerar que ele não tinha comprado o vereador certo.
Que dizer sobre isto? Que a “justiça” juntou a injúria ao insulto, e ambos misturou uma forte dose de desvergonha. Que se a Domingos Névoa não podemos chamar “corrupto”, a não ser talvez entre aspas, a solução está em usar também aspas para nos referirmos à “justiça”. Que, evidentemente, não se espantem estes juízes quando muitas pessoas começarem a suspeitar das motivações por detrás de tais sentenças.
O que fez a “justiça” foi pegar numa coisa que parece corrupção, se comporta como corrupção, fede e tresanda como corrupção – e dizer que está tudo bem. Ao fazê-lo, esta “justiça” dá uma facada na República.
O segundo episódio até poderia ter um início caricato. Afinal, não é todos os dias que um país tem direito a ver um dos seus representantes eleitos – Ricardo Rodrigues, deputado do PS e ironicamente porta-voz para questões de ética e reironicamente conselheiro de segurança interna – roubar os gravadores de dois jornalistas, em plena entrevista, porque não ter gostado das perguntas que estes lhe fizeram.
Mas à medida que fui vendo as reações do PS ao que se tinha passado, perdi a vontade de sorrir. Ricardo Rodrigues, pensaríamos nós, teria pelo menos de passar por uma travessia no deserto pela sua atitude de desrespeito pela imprensa e por aquilo que é, objetivamente, um ato de censura (evidentemente, não me estou a referir a ele ter interrompido a entrevista mas ao facto de ter roubado material jornalístico obtido com o seu consentimento).
Que aconteceu? O ainda deputado não só não teve a decência de abandonar os seus lugares (pelo menos os de porta-voz e conselheiro) como ainda contou com a solidariedade de um partido que, em tempos, sempre quis distinguir-se pela obediência aos princípios republicanos. Para o defenderem, as lideranças do PS recorrem agora aos mais retorcidos sofismas políticos e jurídicos. Imagino que nenhuma daquelas pessoas entrou na política pensando que um dia estariam defendendo o indefensável. Pois agora é isso que estão fazendo, e aparentemente sem vergonha na cara.
E assim vai: não querem que acreditemos na justiça e não querem que acreditemos na política. Desânimo.
4 thoughts to “Duas facadas na República”
Depende tudo das perspectivas. Eu acho tudo isto hilariante, acho até que nem há país tão cómico como este. Lá na Alemanha de onde eu venho é tudo muito sério, muito sorumbático. Aqui fazem-se chifres na Assembleia, a corrupção não é corrupção, há festa e folgas quando cá vem um Chefe de Estado vestido de branco, ainda não percebi se o PM é engenheiro ou não, mas os projectos dele são muito giros, não se sobem impostos mas parece que se sobem, acho que vamos apanhar o TGV a um sítio que ainda vou ter de ver no Google Earth onde é que é, as obras públicas avançam mas não avançam. Eu acho divertido.
Ah, esqueci-me que também há deputados passados dos carretos que ficam com gravadores alheios. O máximo!
Partilho a tristeza e o desânimo, em relação a estes dois episódios em particular.
Às vezes parece que não há nada a fazer. É complicado não desistir…
Muito preocupados com as facadas na república e pouco preocupados com a facada de 10 milhões de euros que a república deu ao Povo com a sua Comissão do Centenário onde pelo menos meio milhão de euros foi adjudicado sem concursos … por estas e por outras que o Povo está pouco preocupado com a republica porque esta não se preocupa com o Povo.