O ponto de vista do refugiado: a segunda foto foi feita pela menina da primeira foto. [Campo de Refugiados de Al Hol, Síria, Março 2010]

Um outro homem ligou ao irmão que vive na Suécia e ele disse-lhe: “Escuta, agora sou um ser humano, tenho um passaporte, posso trabalhar, não fico no campo o dia todo.”

Bairro de Jarraman, Damasco, Síria. – À minha frente estão várias iraquianas. Cada uma delas diz o seu nome, a sua cidade, a sua história. Isma é casada e tem cinco filhos; o marido, três filhos e uma filha regressaram ao Iraque; a filha entrou na Universidade; ela não volta enquanto o quinto filho continuar a receber ameaças de morte. Maya é licenciada em Gestão, vivia bem no Iraque antes da guerra, mas é de religião sabeia; os sabeus (e mandeus) não são cristãos nem muçulmanos; dizem acreditar em São João Batista, e nos anjos; praticam rituais de pureza com água e dão extrema importância ao batismo. Foram ferozmente perseguidos por fanáticos depois da invasão do Iraque.

Dahid era professora de Física. É muçulmana xiita, mas casada com um sunita: “Nos meus filhos corre sangue sunita e xiita.” Os fanáticos de um e do outro lado não gostaram dessa mistura e escorraçaram-nos da cidade. Hoje é voluntária do ACNUR entre outros refugiados como ela: “Tento pelos meus modestos meios encontrar soluções.”

Ezra é sunita e até vivia numa região sunita, mas tinha um problema maior: era jornalista. Teve de fugir quando um familiar foi sequestrado. Hoje vive chocada com o aumento da iliteracia no Iraque depois da guerra. Quer voltar e dar aulas: “Através do trabalho encontro alívio.”

Zohad e Haída são ambas cristãs. A primeira fala e chora, chora e fala, mas não consegue calar-se. De rosto, roupa e maneira de estar, poderia passar por portuguesa. Pensa na Páscoa que vem aí, aflige-se por não poder dar roupa aos filhos para a missa – ideia mais tonta agora, ela mesma diz – e chora outra vez. A segunda foi escorraçada do Iraque simplesmente porque trabalhava para a Cáritas: “Diziam que era para os americanos.”

Aqui na Síria têm acesso aos serviços de saúde e educação nacionais, mas não podem trabalhar. Quem tinha dinheiro já o gastou. Quem não tinha pôs os filhos a trabalhar clandestinamente, para não arriscar uma expulsão.

Campo de refugiados de Al Hol, província de Hazakeh, Síria. – Aqui moram duplos refugiados: palestinianos que fugiram da sua terra após as guerras com Israel e que agora foram expulsos do Iraque por milícias.

Um homem mostra-nos o filho pequeno e ensaia com ele as perguntas e respostas que lhe ensinou. Deu-lhe dois nomes, Omar e Amar, um para usar em casa como palestiniano e outro para usar na rua, por ser tipicamente xiita. Em casa: como te chamas? Omar. És de onde? Palestiniano. Na rua: como te chamas? Amar. És palestiniano? Não! Sou iraquiano. Sunita ou xiita? Xiita.

Um outro homem ligou ao irmão que vive na Suécia e ele disse-lhe: “Escuta, agora sou um ser humano, tenho um passaporte, posso trabalhar, não fico no campo o dia todo.”

Esta gente articulada e digna, que vive num ermo do deserto à espera, à espera, à espera, sabe usar as palavras. “Temos todo o tempo para pensar”, dizem, “e todos têm uma história para contar”. As coisas que dizem são como são: “A Inglaterra invadiu o meu país mas negou-me o pedido de asilo”; “antes dos americanos não havia sectários no Iraque”; “vocês na Europa até tratam bem os animais; não poderiam pensar também um bocadinho na gente?”

Eu posso ter uma opinião sobre isto e o leitor também. Mas esta crónica, hoje, é para as vozes que eu ouvi.

Historiador. Deputado independente ao Parlamento Europeu pelo Bloco de Esquerda (http://twitter.com/ruitavares)

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