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Turistas na Fontana di Trevi [março 2010]

Caravaggio deu dramatismo à sua Itália dramática; Hopper subtraiu triunfalismo aos seus EUA triunfalistas.

Roma. — Uma multidão espera às portas das Escuderias do Quirinal, duas horas de fila, para poder ver reunidas duas dezenas de quadros de Caravaggio, uma ocasião rara.

Caravaggio não pintou muito. A vida intervinha sempre e não era uma vida fácil num tempo fácil. Quando se tornou famoso, por volta de 1600, era tempo de fogueiras. Queimaram Giordano Bruno numa praça ali abaixo, o Campo dei Fiori. Caravaggio, enquanto durou 38 anos, jogou muito, fornicou muito, matou um homem, fugiu para cada vez mais longe — Nápoles, a Sicília, Malta.

Acho que ele era do género que se pergunta “e se?” — aquele que nunca aceita à primeira a história que lhe contaram. Isso vê-se nos seus quadros. Na sua primeira “Ceia em Emaús” pintou um Cristo que é um tipo anafado e sem carisma, como se quisesse experimentar a pergunta “e se Cristo não fosse nada como dizem que era?”.

O quadro é dos seus poucos fracassos, e por isso pintou uma segunda “Ceia em Emaús”: nem ele acreditou na história que contou a si à primeira.

Em “Judite e Holofernes”, a sua obra-prima (com “A Forja de Vulcano” que infelizmente não está aqui), a pergunta é outra: “e se a cara de uma mulher que corta a cabeça a um homem fosse assim como de atenção concentrada, decidida e tranquila, capaz de lançar a espada de um só golpe e ao mesmo tempo olhar, curiosa e bela, para o que está a fazer?”. O quadro é intrigante pela inverosimilhança.

Os seus anjos nunca parecem anjos mas rapazes velhacos com asas postiças. São as caras das pessoas que Caravaggio amava: párias, prostitutas, delinquentes.

***

Umas ruas mais abaixo, outra multidão, esta menor. Esperam para ver uma exposição de Edward Hopper, talvez o maior oposto de Caravaggio em que se pode pensar — um Contravaggio, direi.

Onde Caravaggio nutria a penumbra para nela incrustar o seu olhar agudo, Hopper é apenas luz lisa sem sombras. Caravaggio gosta de profanar o sagrado para o fazer mais insondável e (quem sabe) mais sagrado; Hopper anseia por chegar a um quotidiano hierático. Caravaggio um predador; Hopper uma mera presença.

Entre os anos em que Hopper viveu (1882-1967) o seu país ganhou duas guerras mundiais, tornou-se uma super-potência e dividiu o mundo com a URSS. Veríamos toda a sua obra sem dar por isso. Ele estava “apenas à procura de pintar a maneira como o sol bate num parede”, confessava; na verdade, queria pintar o estado de espírito da pessoa que olha para a parede, parada, pensando.

Caravaggio deu dramatismo à sua Itália dramática; Hopper subtraiu triunfalismo aos seus EUA triunfalistas.

***

Como narrar a terceira multidão, muito maior, de duzentas mil pessoas, que agora abandona a Piazza del Popolo? Ali se manifestaram contra os truques de Berlusconi, o qual agora inventou um decreto para concorrer às eleições regionais nas províncias de Roma e Milão, com as suas listas já invalidadas por tê-las entregado fora de prazo e sem assinaturas suficientes.

Esta multidão vem esperançosa em subtrair farsa desta Itália de farsa. Sabem que por detrás da farsa, há negrume: uma cidade com cartazes fascistas nas ruas, milícias agressivas legalizadas, um país que derrapou há muito. E esta gente sorridente que sai sob o sol de sábado quer acreditar que, por detrás do negrume, haverá claridade.


Vindos da manifestação, Via della Colonna Antonina, Roma [março 2010]

25 thoughts to “Claro-escuro

  • Maria Estácio

    Lutemos,então,com as nossas mãos,inte-ligência,determinação e compreensão para o desanuviamento,equidade e paz viva (suaves como a pomba e vigilantes como a serpente), para um mundo melhor,dentro do nosso coração,’casa’,freguesia e país, para começar. Fraternos e intervenientes,sempre e do modo possível,com todos. Um belo texto,o seu.

  • Maria Estácio

    Dp de mt tempo e esforço,tentando comentar no sítio respectivo (n é este o meu talento…),n consegui e tudo perdi. Dp perdi outra vez aqui,pq esta porcaria se foi abaixo.

    Inte-legi. O q pode ter parecido um tom ‘doutoral ou ‘forma imposta’,não o era (honny soit… e quem tem ‘olhos’ q veja). O começar,cuidar e crescer do amor não é na praça públca. Nada tem a ver com ‘escondidinho’,falta de dádiva ou coragem. Para mim. [É sempre chato serem dois…]. E além de n ser bitola para o q quer q seja,é uma ‘autoridade’ tão risível e escrutinável como qq outra.
    Pode encetar um modus operandi inadequado e invasivo,mt pouco democrático,para cujo peditório já dei demais,numa crucificação afectiva e ética q nem 380 anos seriam suficientes só para imaginar… e onde se perderam alma e espírito,q não o acompanharão nessa cruzada. A in-diferença qt ao passado,sensibilidade e sofrimento do outro,é o quê?… Recuso a máxima de q no amor como na guerra tudo vale. Claro q isto,como tudo,’não obriga e é só para voluntários’. Sabe,se quiser,como comunicar e chegar a mim,não?!…
    Qt ao ‘trócaste’,o q tem acontecido é q tenho contrariado o meu ‘impulso natural’,mas não consegui aguentar o seu sofrimento (tenho recebido ‘a msg’ sem a denegrir),como o seu possível ‘rebaixamento público’,q nunca quis ou ache q mereça. Qt a ‘quem matou quem’ (ou quis),é questão nada pacífica,não?!… Estava a falar consigo,mas quem obrigou ao ‘meio único’?!… Um pouco mais de pudor (lá vai ser mal interpretado outra vez…) e auto-crítica,não?!…
    E,sabe?…,se quer verdadeiramente uma relação ‘de iguais’,além da liberdade (q n não é fazer ‘o, q, qd e como se quer’, n’importe…),da responsabilidade(mais uma q lhe passou ao lado…) e equidade (acha q estão reunidas as condições…?),não pode prescindir da ‘fidelidade a si próprio’. Não?!…
    Além de q ‘mata’ todo o imponderável,risco,tímido,físico,livre e recatado percurso q a dois se faz,d’abord. Não?!…

  • Maria Estácio

    Na 8ª linha,onde se lê ‘escrutinável’,deve ler-se ‘escrutável’.
    Na 9ª linha,deve ler-se ‘mt pouco democrático (para n dizer e acrescentar mais coisas),…’.
    Na 12ª linha,deve ler-se ‘A in-diferença qt a valores vividos(e n teóricos) e justos,qt ao passado,…’.
    Na 5ª linha a contar do fim,deve ler-se «’o q,qd e como…».

    P.S.Um antigo texto de 14 de Fevereiro,não tinha qq ‘conotação’ (nem me lembrou e foi qd abri o computador,mts dias dp do anterior).

  • Maria Estácio

    Abri agora o computador. Ainda não li nada. Mas apetece-me imenso dar-lhe este poema, Rui Tavares:

    ‘Honny soit qui mal e pense

    (ao colégio Sagrado Coração de Maria(não consigo ‘endireitar’ estas linhas. Portanto,vai torto), onde convivi durante quatro anos com almas boas e curiosíssimas)

    Os primeiros tomates que vi eram estremadurences, //
    assim tinha de ser, pois que aqui //
    sempre vivi, as interrupções não quando //
    ainda bebé e criança comecei a comer e a ver tomates.

    pois como eu ia dizendo, os primeiros tomates//
    que eu toquei eram estremadurences, exigida //
    a mão no escuro surpresa e receosa, //
    e depois o não com que a tirei da calça.

    pois os primeiros tomates a sério que eu vi //
    eram ingleses, foi no filme da laranja mecânica, //
    p’la minha saúde que foi a primeira vez que //
    vi, ali, pêlo, se havia, no sítio a mostrar o desconhecido, //

    e eu de tão ingénua até fui presa nessa viagem //
    de plúmbeas e eléctricas antigas alunas, universitátias, //

    nesse ano da graça de sua magestade … //
    e do senhor, claro.’

    [Domingo de Aleluia,Portugal,
    30 de Março MD 1986]

  • Maria Estácio

    Queria dizer: vou fechar o computador.

  • Maria Estácio

    Deve ler-se ‘Honny soit qui mal y pense’

  • Maria Estácio

    Ah…! Esqueci-me de dizer –A minha abstinência é quase tão obscena quanto a promiscuidade.

  • Maria Estácio

    ‘Corpus amoris

    De pensar a rocha semicerrar o mar //
    cheirar o rosmaninho dedos colheita daquelas costas curvas //
    manusear o espelho livro de loucuras e
    pegar a palavra que construo a pedaços de mim //
    descobri-me sujeito de limites e singulares sem Ffim //
    rosas bravas de muitos jardins //
    jardineiros de foice raiva vida canteiros de possiilidade //
    onde arquitecto não é nada senão quando projecto //
    casa coisa
    interior e exterior
    a si.

    … ‘

  • Maria Estácio

    De ‘Corpus amoris (cont.)

    Obscuros os sexos //
    cascatas de maresia //
    a dansa folia quase histeria //
    de nos saber união //
    contenção e desmesura //
    ao centro da nossa alma aflita //
    e livre e morta //
    por alegria

    … ‘

  • Maria Estácio

    De ‘Corpus amoris (cont.)

    As nossas mãos de feno e ferro te descobriram inventaram e a lua nasceu porque a olhámos… (…) ‘

  • Maria Estácio

    a funda que desponta em incrédulos dedos, fome que sacia penetra e dá ao tempo oa imagem de espaço sempre renovado, és ponte … ‘

  • Maria Estácio

    ‘Deve ler-se, antes do último texto,

    ‘…seiva funda que desponta em incrédulos dedos, … ‘

  • Maria Estácio

    De ‘Corpus amoris (‘conclusão da conclusão’)

    ‘…,fome que sacia penetra e dá ao tempo a imagem de espaço sempre renovado, és ponte, incrível abraço de musgo e lua que só vive pporque do outro lado tem outra nuca outro nervo que vibra grita e engravida a terra de outros recaantos prantos de prazer e música. ‘

  • Maria Estácio

    nÃO QJUEIRAS IR POR AÍ….

  • Maria Estácio

    Desculpe,o último ‘texto’ está a mais.

  • Maria Estácio

    A questão da abstinência,é uma boutade (e verdade) minha. Não pretendeu ‘criticar’ nada nem ninguém. Aliás, um adulto e entre eles (desde q n se enganem propositadamente) pode ser e fazer o q lhe aprouver.

  • Maria Estácio

    Na penúltima e última linhas do 4º texto para trás, deve ler-se ‘…outros recantos prantos de alegria de música.’

  • Maria Estácio

    No 9º rexto a contar para trás, deve ler-se:

    « a dança folia quase histeria
    de nos saber
    contenção e desmesura
    ao centro…
    ….. »

  • Maria Estácio

    Nos 4º,8º e 9º textos, os sinais ‘//’ estão errados e são para tirar.

  • Maria Estácio

    «
    ….
    eu faço(-zia) poemas curtos e poemas longos
    compridos na sua desmesurada indiferença e paixão
    e não têm estilo, não me obedecem,
    atrás só os monumentais milénios
    de mim, erguida e curva

    e este poderia ser
    um poema a herberto helder
    uma poética, um não me lichem os cornos
    que eu os quero ponta e agudos

    … »

  • Maria Estácio

    Nada tinha de ‘violento’, só de solidário [e devia estar na ‘Aberração].

  • Maria Estácio

    E não podemos em absoluto deixar de en-atender aos sins e nãos, nossos e dos outros e da vida,não é?

  • Maria Estácio

    Pela 1ª vez usado com portátil,na cozinha a desfazer a sopa e pelo rabo do olho os ‘quadros’ de V. e não só.

  • nascimento

    Lamento não ter o mesmo “nivel” de escrita, tão bela tão pungente como: Dp/dp/qq etc. Não saber escrever tão bem,e do mesmo modo, como nos tempos modernaços em que vivemos. Pois parece, que, para poupar os dedinhos, se prefere subestituir as palavras…

  • Leontine Corke

    Olá Que nivel de detalhamento temos aqui. Acima da média post. Pintar a casa não é dos problemas mais fáceis. Entretanto graças a deus que achei seu blog Parabéns!

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