Os pais — e mães — da Europa, eram visionários de linguagem clara que insistiam em ser compreendidos

Quem disse que a União Europeia não é rápida quando calha? Na segunda-feira pude pela primeira vez escrever sobre um acordo entre a UE e os EUA, de que a maior parte dos cidadãos nunca ouviu falar, e que constrói uma base de dados com as nossas transferências bancárias para durar cinco anos. No mesmo dia o acordo estava assinado — não fosse ele ter de ser renegociado com participação dos eurodeputados.

Tenho participado e ouvido mais debates sobre o Tratado de Lisboa — e o Programa de Estocolmo — e outras coisas semelhantes — do que seria aconselhável. Num deles, após horas de aconselhamento por parte do serviço jurídico do Parlamento Europeu, especialistas aturadamente instruídos acabaram por admitir que não sabiam o que significaria a entrada em vigor do tratado para todos os temas relacionados com liberdades, justiça e direitos civis. Se acha que não entende o Tratado de Lisboa, fique tranquilo; ele de facto une-nos a todos europeus na ignorância daquilo que ele significa.

Outro debate terminou com a pergunta de se o Programa de Estocolmo — eu um dia destes explico-lhe — era relevante ou irrelevante. A resposta chegou em típico europês: meus senhores, trata-se de algo absolutamente relevante e em simultâneo completamente irrelevante. À boa maneira comunitária, os pormenores são da maior relevância: sem darmos por isso, cada um deles altera coisas muito concretas na nossa vida, desde a forma de passar uma fronteira até à forma como os nossos dados pessoais são tratados. Ao mesmo tempo, boa parte dos debates sobre ele parecem ser irrelevantes, na medida em que só afectam perifericamente a definição das políticas.

***

Acontecem coisas demais para serem acomodadas nas ideias feitas que temos à disposição. Fica o resto da crónica para duas destas ideias feitas.

Diz-se que o Tratado de Lisboa foi tão difícil de negociar e de aprovar que a evolução da União Europeia ficará certamente por aqui durante uma geração. Um dia depois da entrada em vigor do tratado, deixarei aqui registado que isto me parece impossível. O Tratado de Lisboa é demasiado contraditório, vago e indefinido para sustentar um projecto para uma União continental com 500 milhões de habitantes. Para além do nome, — que me amolece por razões sentimentais de puro bairrismo e saudades — gosto de algumas inovações que trazem para o Parlamento Europeu poderes de co-decisão. E desgosta-me o resto: a mentalidade mercantilista de antes da crise, a forma como foi negociado e imposto, a insana indefinição e sobreposição dos novos cargos (a propósito: ninguém se lembrou de deixar falar a Sra. Ashton na cerimónia de ontem, ou era uma coisa só para os rapazes botarem discurso?), e a oportunidade perdida para a democracia europeia.

A segunda ideia feita, já agora, procede daqui. Insiste muita gente que os pais fundadores da Europa foram burocratas cinzentos imbuídos de uma cultura de compromisso e absolutamente empenhado numa linguagem técnica e propositadamente incompreensível. Errado. Os pais — e mães — da Europa, eram visionários de linguagem clara que insistiam em ser compreendidos: Spinoza, Diderot, Voltaire, Mary Wolstonecraft e outros, que rasgaram os alicerces da democracia e dos direitos humanos. Não acredito que Sarkozy, Merkel ou Barroso sejam mais sofisticados do que qualquer deles; se a simplicidade era boa para eles, será um dia boa para nós. E a Europa só se reencontrará quando entender isto.

[do Público]

One thought to “Nada é permanente”

  • zawaia

    Caro Rui Tavares,

    Tenho alguma dificuldade em acreditar que os membros do Serviço Jurídico do PE não lhe consigam dar uma perspectiva das modificações que o TL traz matéria de direitos, justiça etc. Parece-me antes que o Rui, ao contrário do que anunciava na altura da sua candidatura, está a mostrar pouca vontade em “aprender” e a enveredar pela via negativista de dizer mal de tudo que outros leitores têm comentado ultimamente. Pelos vistos uma das suas”vítimas” favoritas é o Tratado de Lisboa. É coerente com a posição do Bloco…seria bom também que fosse coerente com a realidade dos factos…

    1. O Rui diz que aprecia no TL mais co-decisão para o PE, mas parece achar que é coisa de somenos. Devia aprofundar um pouco. Mais co-decisão significa mais democracia: significa que o PE – única instituição eleita directamente pelos cidadãos europeus – passa a ter uma palavra decisiva a dizer sobre a legislação aprovada pela UE. Isto é, que o Conselho de Ministros já não pode decidir sozinho. Parece-me, portanto, que significa um passo importante no controlo e legitimação democrática do que se decide em Bruxelas (num jogo de palavras simples, “Bruxelas passa a ter de contar com Estrasburgo”). Mas a co-decisão vai de par com outro aspecto, que é muito importante em termos de eficácia da acção da UE; significa também decisão por maioria qualificada no Conselho (em vez de unanimidade, como sucede actualmente em muitos casos, o que paralisa a acção da UE em dossiers importantes).

    Ora, uma das áreas fundamentais em que o TL introduz a co-decisão, é a área da justiça e assuntos internos. Alguns exemplos: política de vistos, controlos nas fronteiras exteriores da UE, livre-circulação no interior da UE de cidadãos de Estados terceiros, ausência de controlos nas fronteiras internas; asilo, protecção temporária de nacionais de Estados terceiros, imigração e combate ao tráfico de pessoas, medidas de incentivo à integração de nacionais de Estados terceiros, cooperação judicial em matéria penal (por ex, regras mínimas para o reconhecimento de sentenças, resolução de conflitos de competências), definição de crimes comuns e sanções em matérias de criminalidade grave de carácter transfronteiriço, medidas para apoiar a prevenção dessa criminalidade, cooperação judicial em matéria civil, cooperação policial, etc…

    O Rui acha estas matérias pouco importantes? Acha pouco importante assegurar que nestas matérias os ministros do interior dos Estados membros não podem decidir da legislação europeia sem que o PE esteja de acordo? Prefere continuar a deixar isto nas mãos de reuniões de ministros, à porta fechada, sobre as quais nem o PE nem os Parlamentos nacionais conseguem exercer um controlo efectivo? Eu não! Eu acho o TL absolutamente fundamental nesta matéria, para garantir que a segurança não se promove desrespeitando os direitos fundamentais.

    2. Mas há mais exemplos importantes: a política agrícola comum; a política de pescas comum; a política de energia e o combate às mudanças climáticas. Áreas tão importantes para a vida dos europeus. A partir de Lisboa, a legislação europeia nestas matérias passa a depender de si e dos seus colegas. Ou seja, do eleitores…

    Ainda que os peritos do Serviço Jurídico não saibam responder a tudo o que o Rui deseja, acha estas questões pouco importantes? Eu diria que são fundamentais, e que Lisboa significa um grande passo para a democracia na Europa.

    Mas, se a isso juntar o facto de os Parlamentos nacionais passarem a ter um papel importante para garantir que a UE não ultrapassa as suas competências e que a legislação iniciada em Bruxelas é conforme ao princípio da subsidiariedade, resulta que o Tratado de Lisboa reforça claramente a componente democrática da UE. Será isto uma coisa de somenos importância, caro Rui?

    Ou, ainda relacionado com a legislação europeia, o facto de o TL impor que o Conselho, quando delibera sobre matéria legislativa, ou seja, quando se reúne enquanto conselho legislativo (se quisermos, enquanto câmara alta daquilo que podemos chamar o poder legislativo europeu), seja obrigado a fazê-lo em público, de modo a que todos possamos saber o que lá se passa, a que os jornalistas possa saber quem voto como, que documentos e propostas foram submetidas, etc, não contribuirá imenso para reforçar o controlo democrático sobre o mais obscuro dos centros de decisão europeus?

    Ou, para dar mais um exemplo, que finalmente o orçamento da UE passe a ser aprovado em conjunto pelo PE e pelo Conselho, que toda a despesa europeia passa a ter de ser autorizada pela assembleia que representa os cidadãos. Será pouco importante?

    Isto para não falar em outros aspectos como a clarificação das competências da UE, a expressa menção que esta só detém os poderes que os Estados lhe conferem no tratado, a iniciativa popular, o reforço da protecção jurisdicional dos direitos dos cidadãos ou o reconhecimento da força jurídica vinculativa da Carta dos Direitos Fundamentais…

    Tudo progressos em matéria de democracia e transparência que o TL introduz no sistema político europeu. O Rui diz que aprecia. Eu sugiro que os ponha em evidência, pois são de facto muito importantes. Mais, eu creio que são o essencial do TL, e não um pequeno detalhe que de pouco vale face a tudo “o resto”, como o Rui diz…

    3. Aliás, que pode ser esse “resto”, tão negativo, que o faz desprezar um passo tão importante na via da democratização da UE? A ” mentalidade mercantilista de antes da crise”?

    Peço desculpa Rui, mas, ainda que aceitando que ela exista, não há no Tratado de Lisboa um só artigo que reforce essa tal “mentalidade”. Compreendo que não goste dessa mentalidade, eu também não morro de amores por ela, embora seja discutível que a UE seja tão claramente um tal “paraíso mercantilista”. Admitamos que, de facto, a UE se insere naquilo que pode chamar de sociedade capitalista. É verdade. Mas dentro deste sistema (o do mundo ocidental em que nos inserimos, suponho eu, uma vez que nunca fizemos parte do mundo de economia planificada e regime de partido único do Leste ou seus émulos) há muitos modelos. Uns serão ultraliberais, como é moda agora dizer-se, outros até se atrevem a chamar de social-democracia. E a verdade, Rui, é que não nada no TL que signifique reforçar a tendência que os amigos políticos do Rui costumam qualificar de ultraliberalismo (ou mesmo de liberalismo).

    O TL não é, de facto, um tratado que mude muito ao nível das competências políticas da UE. Mas o pouco que faz nesta área é claramente no sentido de acentuar a tendência “social” do projecto europeu. Provavelmente, não tanto como o Rui (ou eu) gostaria. Mas foi o compromisso possível, e é um passo em frente. Rejeitá-lo não significa ir para a frente, mas para trás, para o pré-Lisboa, que se chama tratado de Nice.

    Significa ignorar, entre outras coisas, que o TL inclui o “pleno emprego” e o “progresso social” entre os objectivos da UE. Que obriga as instituições europeias, na definição e execução de todas as suas políticas, a atender às exigências ligadas à promoção de um nível de emprego elevado e à garantia de uma protecção social adequada, à luta contra a exclusão social, bem como um nível elevado de educação, de formação e de protecção da saúde humana (“cláusula horizontal”). Ou que o TL cria uma base jurídica que permite o reconhecimento e a preservação dos serviços de interesse económico geral e contém um protocolo precisando a especificidade do regime serviços de interesse económico geral além de precisar claramente que nada nos Tratados contraria as competências dos Estados Membros no que respeita à prestação de “serviços não económicos de interesse geral”, ou seja, os serviços públicos em sentido estrito.

    É pouco? Será…mas é mais do que o que existia até Lisboa. E, sobretudo, nada impede o Rui e os seus amigos políticos no PE a promover medidas mais progressistas (é tudo uma questão de maiorias, como é normal em política). Que não lhe sirva de desculpa o TL, porque não é por ele que a Europa será mais liberal ou menos socialista.

    4. Noutro plano, o Rui refere-se à ” insana indefinição e sobreposição dos novos cargos”. Será assim tão “insana”? Um Presidente estável do Conselho Europeu para assegurar a coerência e a continuidade dos trabalhos deste e o seu “follow-up” (a não confundir com um “Presidente da União Europeia” que não existe e provavelmente nunca virá a existir – talvez seja essa confusão que leve alguns “desiludidos” a criticar tão fortemente a escolha de Van Rompuy, mas seria bom que esses lessem as recentes entrevistas de Jacques Delors sobre o tema…). Um Alto-Representante que tenta fazer a ponte entre o lado “intergovernamental” da acção externa da UE e a sua dimensão supranacional, que já existe, e que por isso tem um pé no Conselho e outro na Comissão e responde politicamente perante o Conselho Europeu e perante o PE, respectivamente por cada uma das suas duas “vertentes”. Um Presidente da Comissão com legitimidade reforçada por passar a ser “eleito” pelo PE (por maioria absoluta), devendo o Conselho Europeu, quando escolher o candidato, ter em conta os resultados das eleições e proceder às devidas consultas com os grupos políticos do PE. Será isto tão “abstruso” assim?

    Obviamente que não é o ideal e que haverá dificuldades, zonas de sobreposição, tentativas de invasão dos espaços relativos, etc. Mas, será assim muito diferente das dificuldades que existem a nível nacional? Não temos nós também um presidente da República, um Primeiro-Ministro e um Ministro dos Negócios Estrangeiros todos, ao seu nível, com funções de representação externa do Estado português? Não há também conflitos e tentativas de obter a primazia entre eles? Não será possível compreender que quando a Rainha de Inglaterra visitar Bruxelas terá como anfitrião o Presidente do Conselho Europeu? Que quando Obama quiser discutir as relações transatlânticas o deverá fazer em primeiro lugar com o Presidente da Comissão? Que quando Hillary Clinton quiser negociar um acordo de livre-trânsito com a UE o fará com Catherine Ashton?
    Obviamente que se poderá discutir a coerência do modelo e questionar o processo de nomeação dos personagens. Mas também aí seria melhor RT analisar bem o sistema de governo da UE antes de disparar sobre o TL (analisado, por ex., no excelente relatório do PE sobre o desenvolvimento do equilíbrio institucional no Tratado de Lisboa, aprovado em Maio passado, da autoria do ex-Primeiro Ministro belga Jean-Luc Dehaene).

    5. Quanto à ” forma como foi negociado e imposto”. Pois é, infelizmente Lisboa resultou de negociações intergovernamentais (tal como todos os tratados desde a criação da CECA…). Mas, na verdade, a maior parte do seu conteúdo resultou da Convenção. Na qual tiveram assento representantes do PE, dos Parlamentos nacionais, dos Governos e da Comissão. Na qual participaram todos os Estados membros e os países candidatos (até a Turquia). Que foi em permanência aberta à imprensa e à opinião pública. Que organizou contactos com a sociedade civil. Que publicou todos os seus (centenas) documentos de trabalho na net. Foi o processo mais democrático, aberto e transparente de sempre em matéria de revisão dos Tratados. Pois foi sobre esse processo que uma certa esquerda descarregou a sua fúria, em nome da transparência e da democracia… Resultado: em vez da maravilhosa assembleia constituinte democraticamente eleita pelos europeus prometida pelos críticos do Tratado Constitucional, voltámos às negociações diplomáticas, de acordo, aliás, com aquilo que os tratados prevêem…

    Felizmente, o legado da Convenção continuou vivo – em parte graças ao trabalho dos 3 representantes do PE, que participaram plenamente nas negociações – e foi no essencial mantido. E a Conferência Intergovernamental que terminou em Lisboa foi a mais transparente até hoje realizada. E o TL foi ratificado por todos os 27 Estados-membros, segundo as suas regras constitucionais. Seria bom que os idealistas “calibrassem ” um pouco as suas críticas e os seus sonhos…

    6. Isto conduz-me ao último ponto que gostaria de abordar. RT não se conformar com a ideia de que o TL seja por uma geração o estatuto da Europa… Bem, se pensarmos que para chegar aqui foram precisos quase 10 anos desde Nice (na verdade mais, pois desde Maastricht que estamos em revisões constantes dos tratados, para resolver as questões que ainda estavam em cima da mesa em Lisboa) e que qualquer modificação dos tratados continua a exigir a ratificação por todos os Estados membros (e, segundo o Rui Tavares defende, preferencialmente por referendo), é bastante provável que durante algum tempo Lisboa represente o status quo da UE.

    Aliás, a sua afirmação quanto ao carácter “demasiado contraditório, vago e indefinido para sustentar um projecto para uma União continental com 500 milhões de habitantes” não parece jogar a favor da tese de RT. Como historiador, o RT sabe que são exactamente as constituições “vagas” que mais duram… porque o que é vago adapta-se melhor à evolução dos tempos. Basta ver a Constituição dos EUA, a mesma desde 1787, e a quantidade de constituições francesas que até hoje existiram. “Contraditório”? E a Constituição portuguesa, que tenta(va) conciliar a evolução para a sociedade socialista, sem classes, com a democracia representativa, os Direitos Fundamentais com a organização da estrutura económica, a iniciativa privada com o plano? Não será contraditória? Não são as Constituições modernas por natureza contraditórias, na medida em que resultam de um compromisso através do qual tentam acomodar num projecto comum visões tão diferentes da sociedade carreadas pelas diferentes forças políticas que as elaboraram? Não é esse o significado mesmo da expressão “Estado de Direito Social e Democrático” que tão apropriadamente podemos aplicar à maioria dos regimes constitucionais da sociedade europeia do nosso tempo?

    6. Sinceramente lhe peço, Rui: olhe para o TL tendo em atenção o seu conteúdo e o contexto em que foi feito. Julgue-o à luz das inovações que ele traz? Avalie as mudanças que introduz, comparando com o que havia antes. E, se quiser, comece a preparar um projecto ainda melhor para o futuro. Mas não o deite abaixo em nome de algo que ainda ninguém sabe o que poderá ser…

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