Istambul, Turquia. — Tento orientar-me na cidade desconhecida. Cheguei pela primeira vez há menos de vinte e quatro horas; não tenho aqui amigos; o idioma não se parece com nada que eu entenda. E, no entanto, sinto-me bastante em casa.
Istambul não é “outro mundo” — para isso, seria talvez mais fácil pegar no carro e ir até Marrocos, tão perto. Istambul faz parte do nosso mundo; se quiséssemos ser rigorosos, poderíamos até dizer que é ao contrário: é o nosso mundo que em parte foi criado aqui, desde os tempos dos imperadores Constantino e Teodósio. Mesmo quando não sabemos, fazemos parte da história desta cidade.
A basílica de Hagia Sofia — Aya Sofya em turco, Santa Sofia ou Santa Sabedoria se quisermos — é um bom exemplo da amálgama cultural que aqui se fez: sendo ainda na essência um monumento clássico, é um primeiro grande templo cristão, e por acrescento se fez uma mesquita, bastando para isso a aposição de enormes placas caligráficas com dizeres do Corão, os agora famosos minaretes e uma mirhab para indicar a direcção de Meca.
Por isso, se quisermos mesmo ser rigorosos, Istambul faz parte do nosso mundo mas faz também parte de um outro — vários outros — por sobreposição. No avião comigo vinham os emigrantes turcos de regresso a casa, iguais aos nossos emigrantes portugueses, falando com os filhos uma mescla do idioma materno com francês ou alemão. No aeroporto, esperando as bagagens junto ao tapete rolante, estavam os peregrinos que tinham feito a hajj, aguardando que chegassem os seus garrafões de água da sua cidade santa. Por ali passa também um judeu hasídico; nas paredes um cartaz anunciando uma exposição de Chagall.
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Nestes dias de fim de ano é comum evocar o deus Jano, que deu o nome ao mês que começa esta semana, e que tinha duas caras — uma para olhar para o presente, outra para o passado. A Turquia é uma espécie de deus Jano da Geografia: o seu olhar vai para o Ocidente e para o Oriente ao mesmo tempo. Tem de fazê-lo e deve fazê-lo; há nesse duplo olhar potencial e risco.
Nas notícias do dia, uma ilustração do que acabo de escrever. Por um lado, a Turquia oferece-se para ser o local da troca entre urânio das centrais iranianas e combustível nuclear que não serve para fazer bombas; os iranianos parecem confiar nos turcos e os ocidentais estão discretamente esperançosos. Por outro lado, um dirigente cipriota turco diz que já desesperou de procurar uma solução para a divisão da sua ilha com os cipriotas gregos e que não vale a pena continuar a falar para sempre — pelo tom, não parece que se tenha sequer esforçado muito. Em cada caso, um exemplo de como a Turquia pode ajudar a resolver problemas, ou a eternizá-los ainda mais.
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Tenho comigo um email enviado de um estudante turco que faz o seu ano erasmus em Lisboa. Ele Taksim como sendo “o Bairro Alto de Istambul”. Chego aqui e — surpresa! — é o Bairro Alto em Istambul. Sento-me num bar de jazz. Nas paredes, cartazes anunciando que Istambul vai ser a Capital Europeia da Cultura em 2010. Se nos distraíssemos, iríamos jurar que a Turquia já entrou na União Europeia.
E, no entanto, é entre estes jovens idênticos aos jovens de Barcelona, de Amesterdão ou Berlim — que não usam véu mas piercing, que bebem cerveja e falam inglês — que estão os maiores desiludidos com a União Europeia. “Vocês não nos querem”, diz Zeynab, uma recém-economista, “e inventam motivos para não entrarmos. Pessoalmente, acho que não vale a pena tentar mais”.
One thought to “Na terra de Jano”
Sigo de perto as suas crónicas e reflexões. São lúcidas, de agradável leitura.
Estive em Istambul o ano passado e, quando cheguei à cidade, foi uma revelação. Apesar da quantidade de mesquitas, entendi de imediato porque é que a Turquia insiste na ideia de Europa. A Europa faz parte da sua identidade, faz parte daquele palimpsesto que é a Hagia Sophia.