As escutas que têm inquietado o país, porém, não são escutas a José Sócrates; são escutas com José Sócrates — escutas nas quais ele aparece.

Não; o primeiro-ministro não é um cidadão comum. Faz todo o sentido que tenha — no exercício do seu cargo — certos privilégios que os cidadãos comuns não têm. Por isso, ele deve também obrigar-se a certas reservas que os cidadãos comuns não precisam de respeitar. E apenas parte disto está escrito na lei.

José Sócrates foi avisado. Por exemplo, quando processou jornalistas por textos que ele considerava caluniosos. Na altura, a reacção de José Sócrates (persuasiva para alguns dos seus apoiantes) foi: terei eu menos direitos do que o cidadão comum? Não poderei eu processar um cronista que me insulta? Onde está a lei que me veda esse direito?

Em lado nenhum, escrevi eu na altura. É o primeiro-ministro que deve vedar-se a si mesmo esse direito. Desde logo, porque o cronista não o pode processar a ele e porque, mesmo se o pudesse fazer, a assimetria de poder seria sempre gritante. O primeiro-ministro deve ser parcimonioso no uso do seu poder retaliatório contra um cidadão qualquer.

José Sócrates pergunta agora: como é possível que eu tenha sido escutado? Não devem os titulares dos órgãos de soberania estar protegidos por disposições especiais? Não estará isto a ir longe de mais?

A primeira resposta é: aha! O primeiro-ministro não pode querer ser uma pessoa normal (para processar jornalistas) e uma pessoa especial (para ter regras privilegiadas em escutas) ao mesmo tempo. Isso não está na lei, mas está na moral da República; ao contrário das antigas monarquias, a República não dá privilégios gratuitos; com esses privilégios tem de vir uma reserva especial de comportamento, quer ela esteja descrita na lei ou não.

***

Mas a segunda resposta é: as escutas ao primeiro-ministro devem, sim, ter regras especiais. Ele, enquanto decisor, tem informação privilegiada que deve ser protegida.

As escutas que têm inquietado o país, porém, não são escutas a José Sócrates; são escutas com José Sócrates — escutas nas quais ele aparece. E é fútil argumentar que se as escutas forem inválidas nós devemos fingir que elas não existem. A mente pública não funciona com essa rigidez processualista. Ao não ter tido a reserva que deveria no momento próprio, José Sócrates passou a imagem de alguém obcecado com a imprensa. E agora estas notícias parecem fazer sentido, muito azar para ele e para todos nós. É grave imaginar que Sócrates tenha conversado sobre um grupo de imprensa com um amigo banqueiro, que tinha nas mãos a torneira do dinheiro que poderia salvar ou não salvar esse grupo de imprensa. É inquietante imaginar que ele soubesse da tentativa de compra de outro grupo de imprensa em Março, quando muitos de nós (eu incluído) o tomámos ao pé da letra quando ele em Junho nos disse que não sabia. E é mais grave e inquietante ainda que sejam notícias baseadas em escutas que não conhecemos, e cuja credibilidade não podemos aferir.

Maquiavel, na Florença do Renascimento, explicou-nos como um governante pode mentir em caso de necessidade. Esqueceu-se de dizer que o povo também está preparado para, em caso de necessidade, fingir que não vê. E talvez seja isso que vai acontecer agora: o governo acabou de tomar o posse, o país não quer lançar-se no caos. Mas Sócrates deve saber isto: ou ele desata este nó agora, prestando um esclarecimento formal ou, depois de passar o estado de necessidade, ninguém vai voltar a fingir mais nada por ele.

[do Público]

4 thoughts to “De Sócrates a Maquiavel

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Estes temas de escutas e escutados, tem que ficar definitavemente esclarecido, dado que o país, já vai tal mal, que se perder nestes meandros, realmente será o fim…..

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Estes temas de escutas e escutados, tem que ficar definitavemente esclarecido, dado que o país, já vai tal mal, que se SE perder nestes meandros, realmente será o fim…..

  • Nuno Ferreira

    Acho que já chega de boatos e dos casos do Primeiro Ministro, são casos a mais, e como diz o povo “onde há fumo há fogo”, não posso deixar de concordar com o senhor Augusto, realmente a sermos governados por pessoas sempre sob suspeita, com julgamentos e métodos processuais que não são claros e que vão anulando as investigações, indicios, realmente será o fim.
    A imagem que o cidadão pagador de impostos como eu tem, é que as nossas pseudo-elites económicas e partidárias funcionam como la piovra, em que a corrupção, o nepotismo e o tráfico de influências são vulgares, onde não existe o Estado de Direito.

  • Augusto Küttner de Magalhães

    E o problema é que enquanto andamos todos às voltas com as escutas, começando ao PR e agora entre o A.Vara e o PM, o país fica tão distraído ou tão absorvido, que parece que nada mais existe.
    Se o PM é culpado que deixe de exercer, mas enquanto tudo é falatório, nós simples cidadãos é que nos sentimos cada dia mais desgovenados….

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