Há umas semanas estive numa sala onde havia trinta e seis pinturas de Rembrandt. Rembrandt é praticamente o meu pintor favorito. No total, tive cerca de três minutos para ver todas as pinturas. O que quer dizer que não vi praticamente nenhuma.
As trinta e seis pinturas estavam ali reunidas porque tinham sido compradas por Catarina, a Grande, czarina da Rússia, a quem a arte de Rembrandt tinha sido recomendada pelo filósofo Diderot. A sala era no Palácio de Inverno do Museu do Hermitage, em São Petersburgo. A razão por que eu tive apenas três minutos para as ver era porque estava em trabalho, e atrasado, e sem intervalos disponíveis.
Sinto-me como se tivesse cometido um qualquer crime contra a história da arte, cuja culpa é apenas remível quando puder voltar e observar aquelas pinturas até criar raízes no soalho do museu.
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São Petersburgo é uma cidade marítima feita por um povo de florestas, por ordem de um czar cosmopolita e autoritário do século XVIII. Pedro, o Grande, tinha viajado pela Europa e queria uma capital que fosse virada a Ocidente e que se inspirasse em Veneza. O lugar ideal, para ele, foi a foz do rio Neva, onde os braços de rio e os braços de mar e os lagos pantanosos permitiram abrir canais e delicadamente espalhar uma cidade junto à água, em linhas côncavas e convexas, como se fosse uma espécie de dança de salão de há trezentos anos.
O lugar que era ideal para o homem mais poderoso da Rússia não era ideal para o seu povo. O russos não confiavam no mar e não gostavam de ver a cidade espartilhada por canais. Não queriam ser forçados a ir de barco de uma casa para a outra, da fortaleza para o palácio, do salão para o baile. Mas habituaram-se.
São Petersburgo é uma cidade culta, e nisso é um produto típico do século XVIII. No século XVIII a perfeição nas letras e nas artes era vista como atíngivel e não só; a perfeição nas artes e as letras era vista como a principal bitola pela qual se poderia julgar um monarca. Pedro, o Grande, poderia ser um soberano autoritário e egocêntrico, desde que as realizações artísticas e literárias do seu reinado o vingassem — como Luís XIV antes dele e, de certa forma, Dom José I e o Marquês de Pombal mais tarde, em Portugal.
Não por acaso, estes monarcas comparavam-se entre si; e acima de tudo comparavam-se com o passado, que viam como glorioso, de Roma e da Grécia antiga. A bitola com que se mediam era a da História. Trabalhavam para o tempo histórico, o que significa que tinham deixado de pensar, sem repararem nisso, em preparar-se para o Fim dos Tempos (mas isto é outra história).
Entre os muitos — e muito contraditórios — sentido da palavra “cultura”, o sentido em que chamo a uma cidade “culta” é então este: uma cidade que utiliza na sua arquitectura e urbanismo as formas cultivadas, clássicas e eruditas. Para o século XVIII, isto significava olhar para o estrangeiro e para o passado, e escolher os seus modelos. Os modelos de São Petersburgo foram Veneza e Roma. Praças, arcos triunfais, colunas — mas também canais, pontes, palácios ribeirinhos.
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Enquanto estive em São Petersburgo, perguntaram-me muitas vezes sobre as semelhanças entre São Petersburgo e Lisboa. As coincidências são as seguintes:
São Petersburgo é uma cidade planificada, construída no século XVIII. Lisboa é uma cidade reconstruída no século XVIII, após o terramoto, e parcialmente planificada na Baixa.
Lisboa foi reconstruída depois de uma catástrofe inesperada; São Petersburgo sofreu com catástrofes inesperadas (no caso, inundações violentas e repentinas, provocadas pelo degelo do Báltico) depois da sua construção. A historiadora da arte Olga Roussinova, da Universidade Europeia de São Petersburgo, descobriu que as gravuras dos desastres de Lisboa foram reutilizadas mais tarde para representar os desastres de São Petersburgo, mudando as legendas e pouco mais.
Ambas as cidades vivem na sombra de déspotas esclarecidos: em São Petersburgo o seu fundador Pedro, o Grande; em Lisboa o seu “reconstrutor”, o Marquês de Pombal.
As diferenças — entre Sul e Norte, calor e frio, planície e colinas — também são muitas. Mas as semelhanças são suficientes para justificar as perguntas, e punham as pessoas a pensar.
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Ao responder, eu concentrava-me numa praça: a Praça do Comércio, em Lisboa; e a Praça do Senado, em São Petersburgo. Ambas possuem a mesma função, que é a de receber os visitantes que chegam de barco. Ambas têm, por isso, uma estátua do monarca a cavalo, que deve receber com pompa esses mesmos visitantes.
Ao responder, eu dizia o seguinte: a semelhança entre ambas as cidades é que ambas são construídas sob a metáfora de um livro. Quando se inaugurou a estátua equestre da Praça do Comércio, em 1775, dizia-se que a estátua era como “a página de rosto de um livro”, onde costuma estar o nome do autor. O livro era a cidade, e o seu autor era o rei.
Cidades como Lisboa, São Petersburgo, Veneza (ou, embora menos, o Rio de Janeiro após a mudança da corte para o Brasil) permitem isto. Ao chegar-se de barco à cidade, entrar directamente no centro. E depois de começar pelo centro, proceder para o resto da cidade.
Isto permite um maior controle aos “autores” destas cidades. A entrada é como uma encenação; como uma ópera, que estava na moda naquele tempo. A praça onde se chega — do Comércio em Lisboa, do Senado em São Petersburgo — é como um palco. Toda a chegada é cenograficamente preparada.
Mas se a cidade é uma peça de teatro, ela pode ser também um livro — no século XVIII, estas duas formas culturais, a peça de teatro e o livro, eram os meios de comunicação de massas da população europeia —. Começas por ver a capa do livro, a sua “página de rosto”, na praça por onde chegamos. E depois as ruas, as outras praças e as avenidas são como páginas e capítulos desse livro.
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Mas nem todas as cidades são assim — nem todas podem sê-lo —. Nas cidades onde não se chega pelo rio nem pelo mar, mas por estrada, através de terra, não há apenas um lugar para entrar. Madrid, Paris, Moscovo são cidades destas. Cidades redondas, às quais se chega por uma de várias portas a Norte, Sul, Este, Oeste. É impossível saber antecipadamente por onde vai entrar o visitante. E, por muito grandiosa que seja a primeira porta, o visitante vai forçosamente ter de atravessar primeiro os bairros limítrofes da cidade.
Na grande literatura francesa do século XIX, — Victor Hugo, por exemplo — a descrição da chegada a Paris é sempre um momento alto. As personagens vêm da província, cruzam as portas da cidade no meio de uma confusão de carruagens, humanos, animais bagagens, e depois vão procedendo rua a rua, bairro a bairro, furando cada vez no âmago da grande metrópole, até chegar ao seu centro. Nesse centro existe uma espécie de jóia engastada, que é a Île de la Cité, com a catedral de Nôtre Dame. É, por assim dizer, uma cidade dentro da cidade.
Essas cidades, — Paris, Madrid, Moscovo — não são cidades livro, embora possam ser fantasticamente narradas em livros, evidentemente. São antes como cidades-cebola, que se vão descobrindo camada a camada, e nas quais essa descoberta é mais feita por cada indivíduo do que encenada pelo poder. No entanto, conforme nos vamos aproximando do centro, mais a força do poder político é sensível, como se ele estivesse contido num grande íman que marca o pólo magnético do Estado.
Moscovo, por exemplo, é assim. Uma cidade enorme, extensa, com os pés assentes na terra, continental — e não uma cidade sonhada, imaginada, marítima, como São Petersburgo. Mas no centro de Moscovo, depois de penetrarmos por todas as camadas, chegamos ao Kremlin — a Cidadela — e entendemos que estamos no sanctum sanctorum do Poder Russo. Ali está, como se fosse guardado num cofre, o mistério desse poder tantas vezes brutal, seja ele o dos czares, como o dos líderes soviéticos, como o do próprio Putin hoje em dia. Aquela cidade é a Rússia, e é-o tanto hoje como desde há séculos, porque nela todos estes séculos estão acumulados.
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São Petersburgo é a Europa, mas não é bem a Europa. É a antiga capital, o que quer dizer que já não é uma capital. É saída da mente do século XVIII, o que significa que já não a entendemos bem.
E é uma cidade feita para se chegar de barco — como Lisboa — numa época em que se chega de avião, de carro ou por vezes de comboio. O que significa que é como um livro ao qual chegamos pelos últimos capítulos. O que significa que — tal como Lisboa — talvez tenhamos andado a lê-la às avessas.
(Crónica escrita em Outubro de 2009)