Esta crónica começa pelo álibi da incompetência.
Vi na imprensa económica as alegações dos cinco arguidos do caso BCP sobre a criação de empresas fictícias, com sede em paraísos fiscais, para (entre outras coisas que podem ser crime) comprarem acções do próprio banco. O ex-presidente do banco não sabia quem tinha criado as tais empresas off-shore, parece que dezassete. Só poderia ter sido obra de algum subordinado que não lhe tivesse dado conta do facto. O ex-vice-presidente dizia que nunca tal coisa sem informar o presidente. Outro alto-responsável dizia que só tarde demais se tinha dado conta do caso, e por aí adiante. Uns sugeriam que as empresas só poderiam ter sido criadas por alguém abaixo deles, e outros aventavam que elas só poderiam ter sido criadas por alguém acima deles. Mas nenhum, que me lembre, excluía a hipótese de que elas tivessem aparecido nas Ilhas Caimão por imaculada concepção.
(Se estes senhores chegarem a julgamento talvez ainda nos contem a história de como uma certa senhora Almerinda, empregada de limpeza, criou dezassete empresas off-shore e as pôs a fazer negócios ilegais passando acidentalmente com o espanador do pó por cima de um qualquer teclado de computador.)
Dias Loureiro é o melhor cultor nacional do álibi da incompetência. Comprovámo-lo de novo esta semana. Após ter sido ouvido enquanto arguido, no caso BPN, o ex-conselheiro de Estado declarou que apenas agora compreendia alguns pormenores dos negócios que ele próprio tinha feito. Pela sua maneira cândida, depreendi que foi pena não ter sido ouvido pelo Ministério Público antes de fazer os negócios — talvez nesse caso percebesse alguma coisa do que andava a fazer.
***
Aqueles a quem os deuses querem destruir tratam primeiro de enlouquecer. E é de loucura que estamos a falar: só em puro desespero podem estes executivos alardear assim a própria incompetência. Fazem-no, é claro, para esconder coisas piores. Mas mesmo essas coisas, possíveis crimes e ilegalidades, nos desviam a atenção de algo mais profundo e consequente a que o tempo não nos tem deixado dar atenção.
É o fim do mito do executivo.
Em Portugal, o dia em que se deu esse fim foi o do lançamento do livro de João Rendeiro, que tinha como subtítulo “A história de quem VENCEU nos mercados”, assim com aquele VENCEU destacado a cor diferente na capa. Sabemos hoje que o banco de João Rendeiro já estava falido quando o livro chegou às estantes. Nem todos os países hão-de ter tido momento tão simbólico como o nosso, mas todos assistiram ao mesmo fim.
A predominância do mito do executivo era quase universal e dominou as últimas décadas. Lembrem-se bem: estes senhores apareciam em capas de revistas e livros dedicadas às suas qualidades de semi-deuses. Nas horas vagas, por pura bondade, explicavam-nos o que deveríamos fazer aos nossos países, universidades ou pensões de reforma (obviamente, geri-las como executivos). Eles eram perfeccionistas; sabiam nos mais ínfimos pormenores tudo o que se passava nas suas empresas; dominavam equipas e motivavam colaboradores; arriscavam (normalmente com a vida e os empregos dos outros) e venciam. Ou seja, eram em tudo o oposto daquilo que eles próprios nos tentam convencer hoje que afinal eram: desorientados, ingénuos e confiantes em demasia.
BCP, BPN e BPP são as abreviaturas nacionais do fim de um mito planetário. O mito do executivo morreu pela sua crença desenfreada em si mesmo, pela sua “hubris”, como os antigos sempre determinaram. O executivo propriamente dito não desaparecerá mas — tal como com os faraós, os xamãs ou os capitães-donatários — desapareceu a sua civilização.
3 thoughts to “O fim de um mito”
De facto, estamos a assistir a muitas pessoas de curta – memória, o que no minimo é estranho!!!!!!!!!
Muito bom Rui! Muito bom.
Penso que é sempre possivel apontarem-se erros aos outros, quando eles existem,Sendo que é indispensável, não entrar nem pela agressão verbal, nem pela mania de que se tem sempre e só razão. Neste caso concreto, tem o Rui Tavares 100% de razão e razoabilidade. nem sempre!!!!!!!!!