Longo: 25 mil carateres.

1721 North Damen Avenue

A seguinte conversa teve lugar num café do norte de Chicago — o Caffe de Luca da North Damen Avenue, a pouca distância do cachorrinho da foto — a 7 de Novembro de 2008. Andrew Bird tinha já terminado o seu álbum mais recente, “Noble Beast”, e terminaria nesse dia as misturas do álbum extra instrumental “Useless Creatures”. Ainda sob a influência da vitória de Obama e da sua celebração na cidade, começámos pelas relações entre o tempo histórico, o tempo musical, e as suas influências na música de Andrew Bird. Esta é a transcrição quase total do que foi dito.

Andrew Bird [AB]: “Sempre estive interessado em história. Gosto de épicos multigeracionais. Gosto de visualizar o tempo, como se estivesse dentro de um cilindro graduado, sabe? Tenho uma forma particular de… Nunca tinha pensado como isso se relaciona com a música. Mas sabe como a música por vezes tem um efeito de abrandar o tempo , tornar o tempo mais lento? Quando eu faço aqueles loops em camada que se repetem, às vezes conseguem abrandar o tempo. É uma coisa puramente musical, de tempo musical. Nas letras, a História aparece de outra maneira, porque eu tenho uma maneira de escrever que usa muitas palavras e expressões arcaicas para inseri-las nas minhas canções e criar uma espécie de coisa nova. Pegar em coisas que já deixaram de usadas, palavras que já não são novas, e torná-las no núcleo da canção. Por exemplo, Scythian Empires [do álbum Armchair Apocrypha] é uma canção muito complicada para mim, eu visualizo todo o tipo de coisas nessa canção que não estão na verdade dentro da canção. Vejo, por exemplo, uma espécie de agente de imobiliário nas estepes da Rússia, “offering views of scythian empires”, sabe, aquelas vastas extensões das estepes russas [faz o gesto de um vendedor estendendo os braços para as “vistas imaginárias das estepes russas”]. É como tentar trazer coisas do presente… é uma canção que começa muito pessimista e que depois se abre progressivamente e olha para três mil anos atrás, regressivamente, é um tipo de história irresponsável, mas mesmo assim…

Rui Tavares [RT]: Essa música — Scythian Empires — tem também referências que parecem feitas para um império actual como o americano. Estou a pensar na forma como a Haliburton, empresa polémica pela participação na guerra do Iraque, aparece na letra da canção. Por outro lado, os impérios têm frequentemente belíssimas manifestações artísticas. Os Citas e os Sármatas tinham uma arte muito elegante. Ao chegar a Chicago — e ouvindo a sua música — pensei que na arquitectura americana se sente a arte de um grande império. Há trezentos anos não havia aqui nada e agora há esta cidade magnífica.

AB: Nessa música, a ideia das referências à Haliburton e impérios em queda e tudo isso é assinalar que tudo é apenas “a flash in the pan” — vocês conhecem essa expressão? [expressão que usavam os garimpeiros de ouro de aluvião quando um clarão de sol nas peneiras os fazia acreditar erradamente que tinham encontrado uma pepita] — esta cultura veio e foi em apenas trezentos anos, foi nesse período que os Citas fizeram a sua marca na história, e a ideia é assinalar quão fugídio… na verdade, na escala das coisas [trezentos anos] é muito menos do que a gente pensa. Além disso, lançar um nome como “Haliburton” tem implicações óbvias, mas eu estava mesmo só a falar daquelas malas de alumínio — aquelas que as pessoas associam aos espiões —, por alguma razão a Haliburton faz estas malas de espião, além de fazerem infraestruturas de guerra, eles fabricam estas malas tão simpáticas de alumínio há já tanto tempo. Bem a minha imagem era uma coisa assim de guerra fria, a mala de alumínio e as Macintosh, que são as gabardines que estão tão associadas aos espiões — era a isso que eu queria chegar. Mas sim, é interessante… também gosto muito de pensar em como somos “retrovisores” hoje em dia, sempre glorificando o passado recente mais do que o presente. Talvez tenha a ver com o facto de que oito anos de Bush nos façam não acreditar no presente enquanto ele acontece. E aí ficamos nostálgicos. Mas sempre achei isso frustrante. Sempre pensei: o que tem de errado o “agora”? Que tem de errado o presente, por que é ele menos valorizado do que o passado? Sempre me interessou essa ideia. Considero que os músicos também são muito assim… toda a gente está mais preocupada com o próximo revivalismo do que com o presente.

RT: Mas você era também um revivalista, com os Bowl of Fire.

AB: Sim, mas eu não me contentava em ser um preservacionista. Naquele tempo, eu ainda era um fã de música, e adorava o jazz dos anos 20 e 30, e fazia música que soava como a minha colecção de discos. Mas apesar disso eu não estava a tentar viver nos anos 30 como muita gente à minha volta tentava fazer, e eu não queria isso. Então fui refazendo o meu caminho desde os anos 20 e 30 até ao som de Memphis e Motown até ao momento em que estou agora. Fiz a minha retrospectiva pessoal do século XX enquanto estava a dar os primeiros passos enquanto escritor de canções.

RT: Antes de iniciarmos a gravação estávamos a falar de como ser artista é “sonhar acordado” e você estava a dizer que ficou viciado em fazer tournées, e andar em cidades novas de bicicleta, e como isso ajuda a gerar ideias. No meu caso vejo muito de Chicago na sua música e gostaria de saber até que ponto esta cidade é importante para a sua criatividade.

AB: Eu diria que Chicago me influencia, sim. Falando disso de sonhar acordado, há um momento crucial em que houve uma viragem na minha música, que foi no álbum The Swimming Hour, que foi talvez em 2000. Foi ainda com os Bowl of Fire, mas foi no momento que eu me dirigi mais para Memphis do que para New Orleans. Era um disco mais pop-rock [do que de jazz clássico]. A música ainda era muito derivativa, mas as letras estavam a começar a ficar aquilo que são hoje. Há uma música chamada Headsoak que aconteceu quando eu estava a caminhar na rua. Na altura eu vivia num hotel [de apartamentos] antigo dos anos 20 — um edifício lindo — na Zona Norte, junto ao lago, tinha um estúdio minúsculo, era uma daqueles velhos edifícios que até tinha salão de baile, com belas cornijas no topo do edifício que se elevavam sobre a rua, belas cornijas italianas… mas era um bairro decadente e meio descaracterizado. E na altura eu andava muito enamorado por alguém mas sabia que não poderia acontecer nada entre nós. E eu caminhava pela rua, e o meu andamento era hesitante, como se cada passo fosse assim ponderado, e tudo estivesse a abrandar, a ficar mais lento, dando uma sensação de como quando estamos debaixo de água, tudo muito aquático, e a luz também se assemelhava a isto, estava muito aquática. E eu estava a passar ao lado do edifício de um arsenal que existe ali e mesmo ao lado tinham acabado de demolir um edifício — num dia estava lá e no outro tinha desaparecido — e que tinha estado ligado a esse arsenal, e havia como que uma lama negra que parecia sangue e que saía do lado da parede onde tinha sido amputado o edifício, e parecia como se aqueles dois edifícios tivessem estado em tempos unidos organicamente e agora tivessem sido amputados. Tudo parecia muito surreal e eu acho que consegui apanhar isso na letra da música: I was walking / I could hardly stand / the swimming hour / was at hand / the armory wall was bleeding / the restless child is reading / it’s true. E foi uma das primeiras letras em que eu pensei: isto não foi uma coisa calculada, deliberada; tudo convergiu para aqui e agora existe. É isso que continua a fascinar-me [blowing my mind] na escrita de canções é que às vezes é uma coisa muito arbitrária. Num momento é uma confusão de sentimentos e sensações, e no momento seguinte passa-se uma varinha mágica e dizemos: “olha, é uma canção”.

RT: E quando estava a caminhar ao lado desse edifício, — uma vez que o descreveu tão exactamente agora — sabia nessa altura que “vou sempre lembrar-se desta cena, daqui a três ou quatro anos no futuro vou lembrar dela à mesma, uma vez que esta cena em si se parece com uma obra de arte?”. Parece uma cena que se impregna na mente de alguém e fica.

AB: Penso que foi como uma cena num filme que só está ali por razões puramente estética, não faz parte da história, mas é antes um sentimento que um filme pode capturar. Para um escritor de canções, acho que foi assim: a seguir àquele momento a minha reacção foi “estou mesmo feliz com este verso”. E isto só aconteceu porque eu não estava a pensar; não era uma coisa que fizesse parte do pensamento consequente quotidiano, foi algo completamente diferente, e foi aí que eu fiquei alerta para aquela música. Deixei soltar-se uma parte completamente distinta do meu cérebro e confiei nisso. Não dá para identificar.

RT: Há algo para que eu gostaria de redirigir a conversa. Há pouco estávamos a falar de períodos prolongados de tempo, como séculos e a duração de impérios e de movimentos artísticos que duraram décadas… Mas a canção pop é um formato tão breve. A sua mais longa canção pop (tem outras músicas mais longas do que essa, mas eu estou a falar de músicas pop) é Armchairs…

AB: Tem cerca de sete minutos, sim.

RT: E ela muda muito de andamento durante a própria canção. Há outra assim, em Weather Systems, não sei se o nome dela é também Weather Systems.

AB: É. Tem esse título mesmo. Todo esse disco [Weather Systems] é como uma canção só, foi assim que eu quis concebê-lo.

RT: Homogéneo.

AB: Sim. As ideias e os motivos haveriam de reaparecer em canções diferentes de maneira diferente, é uma coisa que eu gosto de fazer. Penso naquele álbum como tendo uma espécie de fios que o tecem e acompanham todo o disco. E há temas líricos, também, que aparecem, desaparecem e reaparecem em outras canções.

RT: Mas o tipo de coisas de que estamos a falar, sejam históricas ou filosóficas, parecem mais aptas a ser utilizadas num formato mais sinfónico do que de música pop.

AB: De cada vez que estou a gravar faço o que quero fazer e nunca tenho ideia de quanto tempo a música dura até que pergunto aos técnicos de som “ok, quanto é que isto durou?” e eles dizem “sete minutos e meio” e eu “ah, que porcaria” e outras vezes dizem “dois minutos e quarenta segundos” e eu “de verdade? que óptimo”. A única coisa em que eu consigo pendurar as minhas ideias é no formato de uma música pop concisa. É a coisa que, para mim, consegue fazer confluir tudo. Mas é por isso, no entanto, que eu acolho “o álbum” como sendo uma peça musical única com diversos movimentos ou suites. As ideias não estão restringidas pelos três minutos. Mas eu tenho esta tensão entre deixar-me levar e estar consciente de que existe um público.

RT: Bem, a música pop é curta mas é talvez uma das melhores coisas jamais inventadas. Uma música pop, desde logo porque a podemos ouvir tantas vezes, acaba por dar uma enorme elasticidade ao tempo. O tempo em que ouvíamos a música x ou y é distinto dos três minutos que ela dura.

AB: É interessante que o teu conceito de tempo mude dependendo de quão prometedoras as coisas são. E o andamento… às vezes sete minutos de música podem parecer dois minutos. Na verdade, o objectivo é esse, se conseguires fazer uma música parecer totalmente prometedora para o ouvinte durante todo o tempo. Essa música de que falava, Armchairs, começa lenta, e depois desdobra-se, e esse foi o desafio absoluto, “como é que eu consigo fazer uma música lenta que não soçobre sob o seu próprio peso, mas mantê-la em desdobramento contínuo e em revelação contínua, sem que se sinta esta coisa pesada e lenta?”.

RT: É uma música ponderosa, meditativa. Parece o capítulo do “Guerra e Paz” do Tolstoi em que ele pára com a intriga do romance para apresentar uma reflexão sobre a história.

AB: É uma música com intriga e subintrigas. É como em Tolstoi também, mas em “Anna Karenina”: posso passar horas a ler aquelas descrições da vida rural na Rússia no século XIX e nunca me cansar delas. Reajo às duas sub-histórias naquele romance de forma diferente: a história de amor da Anna Karenina parece-me ponderosa, no sentido de demasiado intelectualizada, mas já a descrição detalhada da vida no campo? — essa é um fascínio interminável. É interessante. “Anna Karenina” parece dois livros diferentes, pelo menos para mim.

RT: Isso faz-me pensar no seu último álbum — Noble Beast — que eu ouvi ainda pouco. Parece um álbum mais optimista, alegre e campestre.

AB: Não faço ideia.

RT: Foi o que me pareceu.

AB: Ele é mais… — enfim. Tenho andado a escrever músicas que são mais de… auto-ajuda?… mais encorajadoras. Aquela Armchairs já era um bocadinho assim “grab hold of your bootstraps / and pull like hell”? Era um bocadinho assim: vamos lá!

RT: “With a box and a pair of flyers” [dessa música também] traz-me sempre a imagem de mudar de um casa para outra, desempacotar as coisas num apartamento novo. Não sei se era a ideia.

AB: É interessante, isso.

RT: Não tem nada a ver?

AB: Deixa-me lembrar… como é que era o verso. Ah, não. Eu estava mais a pensar em coisas como — o activismo, por exemplo —. Espera aí, como é que o verso? Acho que é um verso mais do género “vamos mudar as coisas”, “vamos cortar a vedação e sabotar aquela estação eléctrica [powerplant]”.

RT: É um verso subversivo. Mas então: este novo album é como os capítulos do Levine [personagem baseada no próprio Tolstoi que serve para falar dos prazeres da generosidade e da vida simples] na “Anna Karenina”?

AB: Não é tão complacente quanto esse capítulos. Um dia quando eu for mais velho talvez escreva um álbum mais desse género. Mas ainda estou demasiado inquieto para isso. O que talvez te diga algo sobre o meu aquilo que me interessa: gosto das histórias mais ásperas para que possa ser a minha mente a criar a história. Mas é verdade que eu gostava do Levine, que é um gajo simpático, ao passo que não simpatizava com a catástrofe iminente e as histórias interpessoais das outras personagens [nos capítulo de Moscovo e São Petersburgo].

RT: O Levine é o próprio Tolstoi, acho eu. Como o Pierre Bezukhov no Guerra e Paz. Os gajos bonzinhos. Mas o Tolstoi também tinha muito “Tolstoi mau” dentro dele e talvez fosse um tipo um pouco falso. Sempre a tentar ser santo… Bem, deixe-me perguntar coisas sobre os álbuns antes que esta entrevista se perca.

AB: Então… são os três álbuns com os Bowl of Fire, e depois o Weather Systems, o Armchairs e este que eu estou a fazer agora.

RT: E depois há os “Fingerlings” [discos com excertos de actuações e versões muito alteradas de músicas que se encontram em outros álbuns].

AB: Pois é, há os “Fingerlings”, e depois há também um que se chama “Music of Hair”, que é mesmo o primeiro de todos. “Music of Hair”, “Thrills”, “Oh Grandeur”, “The Swimming Hour”. O Weather Systems é de quando eu me mudei para o campo e me isolei durante uns tempos.

RT: Isso foi há quanto tempo?

AB: Cinco ou seis anos. Foi em 2002… 2001.

RT: Vivia entre Chicago e o campo?

AB: Não tinha lugar para ficar em Chicago. Arranjei um celeiro durante três anos e andava em tournée sozinho. Foi aí que comecei a fazer um espectáculo a solo. Foi um período de isolamento quase extremo e nenhumas distracções. Mergulhei em mim mesmo e tentei prestar o máximo de atenção àquilo que ouvia dentro da minha cabeça. Foi aí que escrevi músicas como Lull — dois acordes durante a música toda, duas notas, a melodia toda feita com duas notas, tan pan tan pan, duram a música toda. Era o tipo de desafios que eu me colocava, como fazer com que estes dois acordes, estas duas notas nos acompanhem a música toda sem perderem o interesse? Há tantos detalhes e nuances que se podem usar em vez de se abrir o livro todo. Eu estava mais interessado em encaixar polirritmos e texturas em vez fazer um gancho mais geral. Ao passo que a música que eu fazia antes disso era mais densamente saturada com ideias. Não tinham o tipo de desdobramentos que Armchairs tem, ou que estes dois últimos álbuns têm. Estes são um pouco mais pacientes. Um pouco mais dinâmicos.

[Agora para os fãs mais atentos de Andrew Bird: já repararam como tendo ele várias ocasiões para se referir a todos os seus álbuns não se lembrou uma única vez de “The Mysterious Production of Eggs”, que foi talvez o álbum que lhe deu um público mais amplo, e que talvez seja ainda o álbum preferido da maioria dos seus ouvintes? Bem, eu na altura também não reparei. Sabe-se lá porque terá sido.]

RT: Também gosto muito deste EP mais recente, o Soldier on. Tem músicas muito distintas entre si, umas electrónicas e as outras folk. É mais heterogéneo do que os álbuns.

AB: É que nunca houve a intenção de fazer dele “um álbum”. É só uma coleção de músicas que não cabiam em mais lado nenhum.

RT: Uma outra pergunta — não sei se esta conversa está a ficar estruturada ou não — acho que está muito peripatético — eu achei que este último álbum era mais alegre. Contudo, aquilo que você escreveu sobre a primeira música dele, “Oh no”, numa coluna que fez para o New York Times, é que essa música nasceu de uma história verdadeira — e quase triste — acerca de um rapaz que chorava. E quem lesse esse texto não esperaria que a música que resultou dessa história fosse tão solta.

AB: Pois é. Essa música apareceu de uma forma muito boa. Tal como desde sempre achei a música gótica tão pesadona e aborrecida — é porque é negro sobre negro — do género, “ok, vou sublinhar isto um monte de vezes, ou preencher cada canto com tinta da mesma cor”. É por isso que o triste-alegre, aquilo a que chamamos melancólico, aquela luta entre a alegria e a tristeza, às vezes no mesmo tema, é uma coisa que gosto de fazer: salientar um sentimento pelo seu contraste. Musicalmente — aqui não estou a pensar na letra — eu estava a seguir aquilo que me parecia e soava bem, e no fim não sei o que vou apanhar. Mas acho que o que faz sentido nessa música — aquilo de que estou a tentar falar — é que no fundo eu tenho inveja desse rapaz que estava a chorar.

RT: O ponto de partida é que ele estava num avião…

AB: Ele estava no avião com a mãe e chorava. Mas era uma espécie de gemido, de som lamentoso, muito musical. Em vez de irritar os nervos, fez-me pensar naquelas culturas do Médio Oriente em que o lamento se exprime por uma espécie de gemido… e eu pensava “há um tipo de música para isto, há um tipo de canto para isto, mas isto não existe na vida quotidiana — um escape em que seja culturalmente aceitável só deixar sair as coisas desta maneira”. E por isso — que ia eu dizer?

[silêncio]

RT: Uma coisa curiosa nessa música — não me lembro da palavra em inglês — em português diz-se gemer.

AB: ge-mer?

RT: É. O gemido alivia a dor, mas mesmo a dor física. É o que se faz quando se tem uma dor de estômago. Geme-se e a dor fica atenuada talvez pelos registos mais graves do som…

AB: Claro, a ressonância faz vibrar os músculos e — faz sentido. Pois é. Mas essa música, “Oh No” tem umas ideias bastante negras lá dentro. Como por exemplo: os sociopatas inofensivos. “Arm in arm with all the harmless sociopaths / arm in arm with all the harmless sociopaths”. É como quem diz: “às vezes sinto-me tão bloqueado emocionalmente que sou como um sociopata, só que um daqueles que não mata pessoas”. Sabes quando te sentes tão mal e olhas para as pessoas nas ruas e pensas que não tenho nada a ver com ninguém e pensas “ainda bem que não tenho inclinação para matar ninguém”? Às vezes — pois é — sentes-te como um sociopata.

[É preciso explicar que Andrew Bird tem o ar mais tranquilo do mundo e é com esse ar tranquilo que está a falar de ser um sociopata que por acaso não mata gente.]

RT: Vai haver muitos fãs de “heavy metal” a gostar desta entrevista.

AB: “Este gajo é hard core.”

RT: Tem escrito muitas canções, não é verdade, em pouco tempo? O último álbum era ainda relativamente recente.

AB: Eu não estava à espera de fazer um álbum tão rapidamente. Ia tirar um tempo…

RT: E no meio ainda saiu o EP, e também uma coisa para uma peça de teatro…

AB: Ah, é. É um bailado. Fiz umas músicas baseadas nas notas do coreógrafo. E agora o que eu estou a fazer é um álbum instrumental, que estou a terminar hoje mesmo. Vai haver dois discos no novo álbum há um com as canções — que é o “Noble Beast” propriamente dito — e depois há outro chamado Useless Creatures. É o “Noble Beast” e o “Useless Creatures”. O “Useless Creatures” é 52 minutos de música instrumental em que tenho estado a trabalhar durante os últimos anos. A única regra é que não posso abrir a boca durante o álbum — ou melhor, posso abrir a boca mas não posso cantar palavras — cantar até canto, mas sem palavras. Juntei todos os melhores trechos — sabes, de quando faço o controle de som, antes de um espectáculo — às vezes pego só no violino e toco — e o Useless Creatures tem um monte dessas ideias que eu tenho quando estou só a aquecer.

RT: Tem várias faixas ou é só uma?

AB: Não, tem para aí dez faixas diferentes. É mais experimental do que qualquer outra coisa que eu tenha feito. Há uma coisa com que ando particularmente entusiasmado. É assim: aqui há três anos levei um gravador de bobines lá para o meu celeiro, e liguei o meu violino a seis amplificadores diferentes e pus microfones lá fora para detectar os grilos e os pássaros. E o meu celeiro é só uma sala grande com um telhado de madeira, e então fiz uns “loops de abrandar o tempo” esta espécie de loops estáticos que uso — esta é a coisa mais conceptual que já fiz — a ideia é fazer um teclado, no fundo é uma espécie de teclado em conceito, onde ponho um loop para cada nota da escala, maior e menor, e gravámos para aí —

RT: Loops de violino?

AB: Sim, só loops de violino. Todas as notas estão representadas pelos loops, claro que eles têm mais de uma nota, mas num a dominante é ré, no outro a dominante é mi bemol, etc. E gravei-os num gravador de bobine, analógico, e ficou com um som bem rico e saturado. E aqui há duas semanas eu estava em Los Angeles, tirámos as bobines, e pusémos um gravador de duas pistas — isto está a ficar conversa de cromo, de cromo de estúdio de gravação — mas enfim, gravámos tudo num gravador de duas pistas, em fita bem velha, portanto o som ficou meio marado, e alinhámos a coisa de forma a que a mesa de misturas possa ser usada em substituição do teclado, e assim ficámos com esses sons de ambiente ao redor em que se ouvem os grilos, e pego nesses loops e faço-os aparecer ou desaparecer — às vezes tenho de usar as duas mãos e o nariz para poder fazer deslizar os botões da mesa de mistura — e há momentos em que se ouve a bobine a andar mais depressa ou mais devagar… bem, é mesmo uma coisa que não é uma música pop.

RT: Isto que dizia sobre “Useless Creatures” faz-me lembrar aquela teoria da arte segundo a qual as coisas úteis são não-arte e as coisas que são inúteis é que são arte. Claro que a arte é inútil mas depois se torna útil de outra forma. E tu foste dividir o teu álbum em dois… talvez isso tenha a ver com a tal tensão entre ideias sinfónicas e música pop.

AB: Fazer uma música pop de três minutos parece ser uma nobre demanda. Ao passo que fazer uma peça imaterial de dez minutos, eu fico sempre: quem é que vai querer ouvir isto? Isto é uma coisa inútil.

RT: É como uma cadeira. A música pop é uma cadeira, é útil, a gente pode sentar-se nela. E depois há a escultura. E essa peça instrumental de dez minutos seria inútil como a escultura.

AB: É.

RT: E o editor? É preciso conquistar uma certa liberdade para fazer isso.

AB: Ninguém se mete nos nossos assuntos. É uma troca. A gente só tem de entregar o material. Nunca ninguém soube sequer suficientemente bem aquilo que eu estava a fazer para que pudesse dizer-me “faz isto ou aquilo”. Ou seja: essa foi a coisa boa. Mas agora que começo a ter algum sucesso há pessoas que começam a sair da sua toca e a ver sinais de dólar na coisa e a meter-se nos teus assuntos, sabes? Mas isso não vai acontecer agora, não agora depois de quinze anos em que eu já estou a fazer aquilo que eu faço. Por isso…

RT: Faz uma ideia aproximada de para onde quer ir? Nos próximos álbuns, ou na próxima fase da tua trajectória, ou o que quer que seja?

AB: Parece-me que a coisa mais lógica a fazer agora é sair da minha cabeça por um pouco, e talvez fazer um álbum de covers, só de compositores de quem ninguém tenha ouvido falar, uma coisa em que eu poderia aprender imenso e talvez — sabes — reinicializar o sistema? Reinicializar o sistema para o que vier a seguir em vez de continuar apenas a mergulhar a cabeça nas mesmas coisas talvez fosse bom aceitar uma encomenda dessas, uma missão que me afaste um pouco do que eu tenho estado a fazer. Mas ao mesmo tempo a minha banda é relativamente nova, há um novo baixista, e… — as pessoas perguntam-me com quem quero colaborar, quem seriam os meus músicos do sonho, e eu só consigo lembrar-me da minha banda. Está ainda por explorar aquilo de que eles são capazes de fazer. Ainda não os deixei fazer aquilo que eles podem fazer. E estou com vontade de criar um ambiente mais aberto para eles. São todos músicos que já fizeram um circulo completo [nas suas carreiras]. O baixista é um dos melhores saxofonistas-tenor de jazz. Mas aqui só toca pop.

RT: Não o deixa tocar saxofone?

AB: Nem pensar. Saxofone não. Deixo-o tocar clarinete. Agora saxofone numa banda rock — desculpem, mas há coisas que não pode ser. Clarinete é bonito.

RT: Lá está, o clarinete é os anos 20 e 30 como, por oposição, o saxofone é os anos 60 ou 70 ou 80.

AB: Pois é. O saxofone não dá.

RT: E o oboé?

AB: O oboé tem um bom som para o minimalismo, tal como o clarinete mas sem o vibratto, tem um timbre diferente.

RT: Ofereci um dos teus discos a um amigo que é físico e se dedica à acústica. Estuda os instrumentos de sopro, mas só os que usam palheta [no bocal]. Bem, acho que já chega. Quarenta minutos de conversa…

AB: Pois é. E eu tenho de ir terminar este disco.

3 thoughts to “O sociopata inofensivo [entrevista a Andrew Bird]

  • Olho de Lince

    A mais alta labareda atribuiu a este blog o Prémio Dardos, enquanto “forma de demonstrar carinho e reconhecimento por um trabalho que agregue valor à web”.
    Dê lá um saltinho. Obrigada pelo seu trabalho.

  • Olho de Lince

    Tenho consciência que este é um “prémio” demasiado humilde para a qualidade do trabalho por si desenvolvido mas atrevo-me a atribui-lo não obstante esse facto.

  • ezequiel

    Que saudades do Caffe de Luca, não o de Chicago, que desconheço, mas o que fica em soho. Belo post. ezequiel

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