Vocês irão para 2009; eu irei para 1768.

 

Um dia, no intervalo de uma aula com o historiador italiano Giovanni Levi, ouvi-o expor a sua “Lei da Inteligência dos Historiadores”: quanto menos documentos disponíveis tem, mais inteligente se torna o historiador. Os contemporaneístas têm nos arquivos milhões de fontes e acabam por ficar embotados por elas. Já os arqueólogos são verdadeiros génios: observando meia-dúzia de ossos e artefactos são peremptórios em afirmar “sociedade matriarcal, estrutura em clã, deuses ctónicos”. Embora esta fosse uma brincadeira destinada a divertir alguns colegas e irritar outros, o que Giovanni Levi pretendia dizer era isto: que os documentos têm sempre mais do que um nível de interpretação. O bom historiador nunca os declara esgotados.

 

Sou um historiador que, quando não escreve crónicas para jornais, anda pelas bandas do século XVIII menos do que gostaria (mas já lá vamos). Estou portanto a meio do caminho da Lei de Levi, um pouco mais para cá do que para lá.

 

O século XVIII tem mais documentos, livros, obras de arte e outras fontes do que eu jamais serei capaz de esgotar. Diz-se que foi a primeira época em que passou a ser impossível a uma pessoa abranger todos os ramos do conhecimento (diz-se isso de vários séculos). Foi também uma época obcecada com a noção de utilidade. O lema da Academia das Ciências de Lisboa: “nisi utili est quod facimus, stulta est gloria” — se não for útil o que fizermos, insensata (ou vã, ou mesmo estúpida) será a glória. É uma ideia de que conheço os limites mas que ainda assim não me abandona. Pergunto: em que posso, afinal, ser-vos útil? Estudando o século XVIII, não estou perto o bastante para dominar a actualidade que aqui comento, nem longe para vos poder surpreender com visões de épocas longínquas.

 

***

 

Sim, que utilidade há naquilo que aqui faço? Ao longo destas crónicas tenho chutado umas respostas. Há uns bons meses escrevi que “nada poderia ser tão útil na opinião publicada como questionar os pressupostos do debate público”. Depois chegou a crise, e com ela a necessidade de conhecer as suas causas e especular sobre as suas consequências. E claro, há também a pretensão de que um cronista sirva para dar opiniões, e que a sua utilidade seja aumentar o número de opiniões no espaço público. Isso para mim sempre foi um problema; lá me vou esforçando mas não tenho assim tantas opiniões. E que tipo de opiniões são mais úteis? Definitivas, aproximativas, agregadoras, polémicas?

 

Que trazem os historiadores para o comentário da actualidade? Talvez o hábito de ler documentos de épocas afastadas lhes permita olhar de forma diferente para as notícias da véspera. Eu não escrevo nesta página enquanto historiador, mas isso é aquilo que eu sou. Uma crónica não é a mesma se escrita por um historiador, um economista ou um filósofo — neste último caso, diríamos que a sua formação o habilita a detectar facilmente as falácias nos argumentos dos outros e a ser absolutamente cego para as próprias. No caso dos historiadores, uma época ajuda a reciclar a mente da outra. A nossa atenção essencial é para as mudanças no tempo, que é aqui a palavra-chave. E o tempo aparece na palavra crónica pelo nome do antigo deus Khronos (que em grego também significa “ano”: usa-se hoje à noite para desejar feliz ano novo) e nos coloca sob o signo do romano — e melancólico — Saturno.

 

As mudanças no tempo: aqui chegamos ao que desejo dizer-vos. É o último dia do ano; a partir de hoje, suspenderei por um par de meses esta crónica. Vocês irão para 2009; eu irei para 1768, onde tenho uns assuntos para resolver. Continuo sem saber se foi útil, mas espero que tenha sido bom — e até breve.

 

[do Público]

10 thoughts to “Em que vos posso ser útil?

  • margarida

    Vou ter saudades da Cronica sem dor que me ajudou a pensar e ver, pelos seus olhos, uma realidade por vezes confusa.
    Foi um reencontro e fundamentação de formas e opções de vida que defendo.
    Espero que ao «vasculhar» e fundamentar alguns factos do sec. XVIII, encontre as razões e descubra os comportamentos que geraram boas e más vivencias, e depois volte a partilhar connosco.
    Para já fica este espaço como ponto de paragem para reflexão.
    Como leitora e como cidadã agradeço-lhe as cronicas.
    Desejo que obtenha bons resultados e muito prazer no trabalho que vai retomar.

  • ana

    Andaste na Luísa de Gusmão?

    Vê lá tu que ontem estava a ver a SICNotícias (as minhas insónias não me dão descanso!!!!) e o teu semblante afigurou-se-me algo familiar.

    Bem, mas antes de continuar este discurso e correr o risco de me estar a envergonhar (caso não sejas quem eu penso), volto a inquirir-te “Andaste na Luísa de Gusmão?”

    Se és tu, e quiseres navegar pelas imemoriais lembranças da nossa juventude o meu e-mail é (olha lá, não o posso postar aqui, mas “checkei” a caixa que diz “notify me of followup comments via e-mail”)

    Se não és tu, penitencio-me eternamente por este desvario.

    Até já…. ou não…

  • Blondewithaphd

    Engraçado, eu fico-me pelo XIX, por vezes mais do que queria, outras nem por isso… Já as fontes, os arquivos, os documentos, esses lá estão prontos a falar connosco, maleáveis à interpretação, testemunhos a que restituímos voz, e, pobres de nós, tantas vezes a voz errada.

  • Paulo Querido

    As tuas crónicas far-me-ão falta. Vou-te lendo como puder 😉

  • rb

    Sou (era) leitor assíduo da crónica do Rui Tavares, mas não tinha lido esta última. Curiosamente, soube dela através da crónica do Diogo Quintanela, ontem, no Público. Este, fez-lhe uma apreciação interessante e engraçada com a qual de alguma forma concordo.
    Conhecer a visão de um historiador sobre a actualidade é muito útil. O bom conhecimento que este tem do passado, permite-lhe compreender melhor o presente e até projectar o futuro.
    Tendo o historiador, Rui Tavares, uma consciência social admirável, melhor se torna lê-lo. Mais ainda por serem inteligentes e bem humoradas as suas opiniões.
    Por tudo isso, ficam mais pobres os leitores e o jornal sem a Crónica Sem Dor. Mas tal como na história, tudo é feito de ciclos.
    Enfim, lá vou eu ter que voltar a ler o jornal da frente para trás e desejar que o regresso do Rui Tavares seja rápido, pois, este tempo merece a sua escrita.

  • Zé Filipe

    Ora nós cá continuaremos no século XXI com menos uma opinião útil. Bom trabalho e até daqui a dois meses.

  • Nuno Ramos de ALmeida

    Interessante, o EH Carr escreveu o mesmo no seu livro “O que é a História”

  • Nuno Ramos de ALmeida

    A parte da sorte dos historiadores do passado e do azar que é ter documentos a mais. Essa coisa da inteligência dos historiadores.

  • Charlot

    Quano cheguei a esta pagina estive pesquisando como poderia ser util. Eate foi o mkotivo. Encontrei a resposta clara e objetiva qualdo percebi que podemos ser util quando realizamos algo que beneficia as pessoas e nçao a nos. Somos portanto uteis qualndo as pessoas são nbeneficiadas e não buscamos a nossa satisfação. Daí nos tornamos publicos e se sabemos as necessiaddes de uma época ou situação ou das pessoas ccabe dentro do conhecimento de cada um criar uma solução que satisfaça esta necessiadde. N

  • Russo

    Muito bom o texto, parabéns!

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