Não estou a dizer que vai acontecer. Não estou a dizer que deva acontecer. Mas a minha impressão é a de que — se vier a acontecer — tudo mudou.

 

As análises de como é impossível, cansativamente impossível, haver convergência de esquerda já estão todas feitas. Poupemos tempo ao leitor.

 

O que até agora ninguém fez foi sentar-se para pensar em quanto poderia valer um futuro partido de Manuel Alegre, se coligado ao Bloco de Esquerda. Contas por baixo, eu diria que para lá de quinze por cento, com vinte a trinta deputados no parlamento. Isto significa o dobro do PCP, três vezes mais do que o CDS, e talvez metade do PSD. Significa ser o terceiro partido, destacado, provavelmente impossibilitar a maioria absoluta do PS, e retirar-lhe sequer a possibilidade de fazer governo com o CDS (mesmo que matematicamente possível, seria suicidário juntar-se ao provável último partido nas eleições, escancarando assim as portas às críticas da esquerda em crescendo). Numa situação dessas restariam duas hipóteses a Sócrates. A primeira seria ter um governo minoritário num parlamento em que a nova coligação de esquerda seria uma força fundamental. A outra seria aliar-se a um PSD em cacos num governo de Bloco Central que, em anos de crise, seria visto pela população como o aliado natural dos grandes interesses. A segunda opção seria má para o PS, muito má para o PSD, e pior para a República.

 

Surpreende-me por isso que haja um coro instantâneo garantindo que não há aqui nada de novo. Do meu lado, ainda me encontro a digerir a ideia. Não estou a dizer que vai acontecer. Não estou a dizer que deva acontecer. Mas a minha impressão é a de que — se vier a acontecer — tudo mudou.

 

***

 

A ideia de que o diálogo à esquerda é uma coisa supostamente muito difícil parte de uma distorção de perspectiva. Entre o povo de esquerda as diferenças são hoje muito mais superáveis (sempre foram, aliás) do que entre os líderes partidários obrigados à competição eleitoral. Consideremos este diálogo entre bloquistas e alegristas. O primeiro acto foi um comício; o segundo acto já foi uma série de debates entre especialistas e políticos com uma componente prática. E agora, depois da notável aceleração que se deu este Domingo, há uma tendência natural para pôr alguma água na fervura. A começar pelos líderes, que não sabem o que sairá dali.

 

A minha sugestão é: perguntem. A opacidade dos partidos políticos em Portugal e os nossos fracos índices de participação política — combinada com uma tendência dos líderes de esquerda para o controleirismo — sempre foram um problema. A consequência é um desperdício de potencial político da nossa sociedade civil. Quem não quiser contrariar isto não poderá realmente mudar o país.

 

Façam um fim de semana de debates em sistema semi-aberto, com uma parte de convites e outra de inscrições voluntárias. Criem uma estrutura na internet, ainda antes do evento, para receber inscrições e para divulgar as sugestões concretas que saíram dos debates já realizados, do direito do trabalho à economia. Aceitem que alguns desses inscritos participem na organização. E façam a coisa sem compromisso — ninguém tem de ser de um partido ou sequer defender a fundação de um partido — mas centrada nos temas da esquerda, da democracia e da cidadania. Pelo caminho compreenderão se vale a pena alterar o mosaico de partidos existente ou deixá-lo como está, aumentando apenas os canais de diálogo. Isso talvez nem seja o mais importante. Mas perguntem. As pessoas vos dirão o que pensam.

 

 

[do Público]

4 thoughts to “Se não sabem, perguntem

  • Ant.º das Neves Castanho

    Não vejo nada de “mal” numa união das Esquerdas à esquerda do P. S., se bem que o alvo principal me pareça ser não a Direita, mas o actual Primeiro-Ministro, o que pode ser uma forte limitação ao sucesso da estratégia dessa união.

    Também não me parece mal a oposição de Esquerda ganhar mais consistência, desde que isso sirva para encetar, finalmente, o caminho do crescimento e da maturidade política que permitasm ultrapassar a fase da crítica e passar à criação de algo construtivo, que um dia se venha atraduzir, de facto, em programas políticos sérios.

    Mas também não me parece interessante um novo Partido conjuntural, só para “roubar votos” ao P. S., à semelhança do defunto Partido eanista (em que o P. C. P. tanto apostou ingloriamente…), cuja maior concretização política foi, de facto, ter criado as condições para o advento do…CAVAQUISMO!

    Com este distinto palmarés à partida, qualquer candidato a “condicionador do P. S.” deve pensar duas vezes antes de se dar à maçada de engolir sapos.

    Fui claro?

    Se não, é só perguntar…

  • Pedro Viana

    “A segunda opção seria má para o PS, muito má para o PSD, e pior para a República.”

    Concordo com todo o conteúdo do texto, com excepção da frase acima. Acho que o PS teria muito mais a perder coligando-se com o PSD, do que este. Veja-se o que se passou no período 1983-1985, que poderá servir de analogia ao que aconteceria se em 2009 tomasse posse um governo com PS e PSD coligados. Um governo PS+PSD inevitavelmente teria políticas ainda mais à Direita que o actual, alienando provavelmente de modo definitivo, e em crescente número, os eleitores tradicionais do PS posicionados mais à Esquerda. Por sua vez, o PSD poderia dizer que apenas entra numa coligação com o PS para “salvar” o país duma coligação à Esquerda. Passados talvez 2 anos (como em 1985…), o PSD substitui Ferreira Leite por um líder mais dinâmico (Rui Rio, Passos Coelho, Aguiar Branco), derruba o governo e aproveitando o desgaste inevitável do PS e de Sócrates, recupera o seu eleitorado tradicional em eleições legislativas antecipadas. O resultado destas eleições será um esmagamento do PS, que veria o seu eleitorado à Esquerda definitivamente perdido para o binómio BE+PCP e o eleitorado (inerentemente flutuante) anteriormente captado no centro-direita virar-lhe as costas. Prevejo que nessa situação o PS sofreria um colapso no seu voto semelhante ao de 1985, caindo para uma banda de 25% a 30%, potencialmente ficando atrás pela primeira vez do conjunto dos partidos à sua Esquerda. Dificilmente recuperaria de tal colapso, pois BE e PCP possuem uma solidez que faltava ao PRD. Este cenário parece-me o mais provável caso haja uma coligação PS+PSD após as eleições legislativas em 2009, e é obviamente muito mais catastrófico para o PS do que para o PSD. Será mau para a República?… Depende. É bem possível que este cenário levasse o PSD a ganhar as eleições legislativas antecipadas pós-2009, mas sem maioria absoluta mesmo em conjunto com o CDS-PP. Seguir-se-ia um período caótico, que levaria ou novamente a eleições legislativas antecipadas ou à formação de um governo de Esquerda, talvez uma coligação PS+BE com apoio parlamentar do PCP. Dependerá do sucesso desse governo uma eventual clarificação do sistema político português, e um seu recentramento à Esquerda. Obviamente é tudo altamente especulativo e dependente de quem sucederia a Sócrates após uma derrota catastrófica do PS. Acho que o que está a acontecer ao SPD na Alemanha também poderá ser um bom modelo do que poderá acontecer ao PS.

  • Jorge Nascimento Fernandes

    Tomei a liberdade de publicar em “http://www.comunistas.info/” a sua interessante crónica relativa à união da esquerda, na sequência do encontro da Aula Magna. Espero que não se importe?

  • JPN

    Rui, claro que as tuas ideias para que as ideias sejam debatidas fora dos esquemas viciados do controlo partidário são excelentes e o melhor do teu post. Também: creio que há um grande erro na analise contabilistica do capital politico de Alegre e tu, como todas as pessoas, sabem bem qual é. Manuel Alegre concorreu nas listas do PS para o Parlamento e foi candidato à Presidencia da Republica. Extrapolar daí um capital politico transferível para as eleições parlamentares parece-me pouco consistente mesmo podendo tomar-se em linha de conta sondagens e outros movimentos de opinião posteriores. Só para um bloco que parece nunca se ter preocupado em clarificar-se ideológicamente, é que parece poder ser sedutor um possivel chamariz de votos sem programa politico por detrás. Eu sei, os partidos tradicionais tratam muito mal os seus programas e não é por isso que são penalizados pelos seus militantes. Isso é um péssimo argumento, no entanto. Porque se há qualquer coisa que ainda permanece como ADN da esquerda é este apego à ideia de que a que a politica possa falar verdade.

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