Sabe que gosto muito de si Rui e é por isso o título “a cruel verdade” me suscita a pergunta: porque não retoma o tema, que o trazia tão entusiasmado na própria noite das eleições americanas a propósito do referendo na Califórnia, do casamento gay? Faço votos de que seja porque percebeu que se trata de tema irrelevante e mesmo ridículo, mas não deixaria de ser interessante vê-lo falar sobre uma desilusão neste contexto em que, lamento dizê-lo, está tão ilusionado sobre as vurtualidades da sua “grelha de análise da realidade”.
Bem, eu nunca fiz previsões sobre o referendo na Califórnia e se tivesse feito era para o casamento gay perder. Para ser sincero, acho que perdeu por pouco. As pessoas esquecem-se que só se fala deste tema há menos de uma década, depois de milénios em que um homem casar com outro homem (principalmente isto) era a própria imagem do mundo ao contrário. O que disse na noite eleitoral na SIC-N quando fui o primeiro a declarar que Obama ia ganhar as eleições, ponto final, foi que faltava saber a dimensão da vitória no senado (pelo menos 57 senadores em 100) e os resultados na Califórnia, que não eram importantes do ponto de vista eleitoral mas como barómetro cultural nada irrelevante nem ridículo. Mantenho.
Já agora, aproveito para dizer que sou contra o referendo neste caso. Estou à vontade, porque fui sempre a favor do referendo do aborto, apesar de isso ter dificultado a mudança no sentido em que eu pretendia (e muitos dos meus amigos de esquerda serem contra).
A diferença está nisto. No caso do feto, há uma decisão a tomar sobre o estatuto de um terceiro, ou de um potencial terceiro, cuja configuração é ambígua por parte da sociedade. É parte da mãe? É um ser autónomo? Se sim, merece a protecção jurídica da sua existência? Creio que faz sentido entender o que a maioria das pessoas pensam sobre isto, e que isso se entende indirectamente através do referendo.
Quanto ao casamento gay, não há tal ambiguidade. Trata-se de duas pessoas adultas e livres. A única razão para lhes negar o direito de casarem com quem amam é considerar que se tratam de cidadãos de segunda. Foi isso que ocorreu em tempos. Hoje vivemos nos resquícios desse tempo, mas sem qualquer sustentação legal, política ou científica que justifique tal posição. Pelo contrário, é aberrante a todos a ideia de que um gay seja um cidadão de segunda. Não sei então como poderemos ter as maiorias a decidir o que podem ou não fazer cidadãos na plena posse dos seus direitos que não prejudicam a liberdade de outrem. Não vou referendar o meu casamento, não vejo por que os meus concidadãos gay terão de passar por isso.
One thought to “Dos comentários”
Fico muito honrado com a aparição da minha prosa, infelizmente cheia de gralhas, neste blog. Julgo que não merecia esse relevo, tal como o tema não o merece. O meu ponto eram dois: procurar chamar a sua atenção para a irrelevância política do tema do casamento homossexual e para o ridículo de um tipo da sua craveira gastar tempo e espaço com ele; procurar chamar a sua atenção para a necessidade de não estarmos demasiado convencidos de que a nossa “visão do mundo” é a certa. Pelos vistos tive sucesso nulo, mas no que diz respeito ao último ponto confesso-lhe que iria jurar que você estava convencido de que o resultado do referendo seria o outro, sobretudo atenta a vitória relativamente esmagadora do Obama na Califórnia. Mas pelos vistos enganei-me e não duvido de si.