A direita comentadeira, em particular a portuguesa, é muito curiosa. Aqui há um ano, quando António Costa e José Sá Fernandes formaram uma aliança na Câmara de Lisboa, houve um sobressalto geral contra a proposta de introduzir uma cota para habitação a custos controlados. Denunciou-se que era uma ideia “cubana”, apesar de estar em prática de Nova Iorque a Amsterdão, por infringir o direito sagrado dos promotores imobiliários colocarem cem por cento das suas casas no centro da capital a preços irrealistas, contribuindo para que Lisboa se torne numa espécie de ovo com a gema esburacada.
Passado um ano, descobre-se que essa medida seria talvez a melhor forma de evitar problemas como o da Quinta da Fonte. Em vez de continuar a fazer bairros sociais como depósitos de pobres, deve alojar-se por unidade familiar em bairros comuns, com rendas ou prestações apropriadas aos rendimentos.
Sabe-se que a criminalidade e a violência são maioritariamente praticadas por homens jovens e adultos, entre os 18 e os 30 anos, e tanto mais quando concentrada localmente. Pois bem: uma família com filhos menores num bairro comum, frequentando uma escola comum (e com esta regra muito clara: só deve receber benefícios do Estado quem mantiver os filhos na escola até ao fim) e participando na vida desse bairro, é uma família que está mais afastada da criminalidade quando os filhos crescerem.

Mas há mais: o facto de as casas a custos controlados não serem só para pobres, mas também para a classe média e os jovens casais, afasta o estigma. O facto de os custos serem alterados conforme os rendimentos e modificados ano a ano diminui a fraude. E, como bónus, o centro da cidade fica mais povoado e activo.
Os bairros sociais são francamente melhores do que os bairros de lata que os antecederam. Mas têm defeitos. Não têm comércio, porque são “bairros de pobres” e economicamente inviáveis. Às vezes não têm transportes, porque é preciso fazer linhas novas. Mas se promovermos a mistura social pela cidade, a mesma loja de rua serve toda a gente e é economicamente viável. As linhas de transportes são as que já existiam, etc.
Em suma: a mistura social na cidade pode não ser uma ideia perfeita, mas é melhor do que o bairro social, que já era melhor do que o bairro de lata.

Se é difícil discutir a ideia de destinar casas para famílias de classe média ou de pobres nos bairros da Baixa ou – sacrilégio! – da Lapa, já é ridiculamente fácil descobrir a pólvora da semana passada: que há racismo entre negros e ciganos.
No Expresso, Fernando Madrinha é característico: “O racismo não é só a preto e branco”, escreve ele, “o que baralha um pouco a esquerda bem pensante”. Mas, oh Madrinha!, alguém lhe prometeu que era impossível haver ciganos racistas, negros racistas, judeus ou árabes racistas? Alguma vez lhe garantiram que a pobreza é uma escola de virtudes da qual é impossível sair-se criminoso? Pensava eu que era ao contrário e que, por isso, era tão importante erradicar a pobreza. Sendo assim como diz, não sei que “esquerda bem pensante” tem andando a ler; se lhe quiserem vender a Ponte Vasco da Gama, desconfie.
Mas a candura de Fernando Madrinha serve ao menos para revelar que a motivação particular do “debate” não é afinal mais elevada do que poder embaraçar a “esquerda bem pensante”. Não se iludam, amigos. Por mim, poderei passar tranquilamente o Verão a discutir a Quinta da Fonte: com sorte, pode ser que ainda os veja meditar um pouquinho sobre ideias que há um ano atacavam como “cubanas”.

21.07.2008, Rui Tavares

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