[do Público de 12 de Agosto]
Mas as crianças de quatro anos chegam aos cinco anos, e aí começam a exigir-nos mais: “eles são maus porquê, mãe?”
Cada ameaça de atentado terrorista dá aos políticos uma janela de oportunidade para tratar os cidadãos como crianças de quatro anos. Para ser rigoroso, o mesmo acontece nos atentados reais, mas nessas ocasiões estamos demasiado ocupados com a brutalidade daquilo tudo para prestarmos atenção à pincelada grossa com que os nossos líderes pintam a realidade do mundo. Mas numa ocasião em que felizmente não há vítimas a lamentar, sobressaem em toda a sua rudimentar trivialidade as declarações de Blair, despachando uma definição dos terroristas como pessoas com “mal nos corações” ou “com corações muito maus”, e os afloramentos retóricos de Bush — esse magnífico simplificador — que esta semana andaram em torno disto: “detestam as nossas liberdades”, “querem destruir aqueles que amam a liberdade, magoar a nossa nação”, “este país está mais seguro do que antes do 11 de Setembro, mas obviamente não estamos completamente seguros porque ainda há gente que conspira e gente que nos quer magoar por causa daquilo em que acreditamos”. Com quem pensam eles que estão a falar?
Nós, cidadãos comuns que viajamos em aviões comerciais, já percebemos que há gente disposta a rebentar connosco. Sentimos medo e detestamos a ideia o bastante para poder pôr as coisas em termos semelhantes quando falarmos com os nossos filhos: “são homens maus, filha”. Mas as crianças de quatro anos chegam aos cinco anos, e aí começam a exigir-nos mais: “eles são maus porquê, mãe?” E nós, vendo chegar os cinco anos do 11 de Setembro 2001 sob a sombra de um atentado que poderia ter sido pior ainda, também começamos a exigir mais dos nossos líderes: que liberdades são essas que os homens maus detestam? será beber-se álcool, usar-se mini-saias, casarem os homossexuais em Espanha? matam-nos e matam-se apenas por isso, ou haverá mais qualquer coisa?
A partir deste ponto entramos em território perigoso. A qualquer momento poderemos incorrer na blasfémia de indagar sobre as causas do terrorismo. Sabemos o que acontece quando se sugere que é necessário tentar compreender o terrorismo. Mário Soares e Freitas do Amaral que o digam: os neo-conservadores não perdoam. Para eles, compreender o terrorismo é aceitá-lo. Pior: é apoiá-lo. É atirar todas as culpas para o Ocidente. Pior: é idolatrar Bin Laden e detestar o Ocidente.
Não importa que, seguindo a lógica neo-conservadora, o terrorismo se torne naquele grande mistério da filosofia que é o efeito sem causa. Para esses auto-proclamados defensores do Ocidente o essencial é condenar apenas e ficar por aí. No máximo, seguir o líder. Tudo o mais levar-nos-ia para uma via de depravação moral e política. Lamentavelmente para eles, isso vai contra a mais nobre tradição do pensamento, ocidental ou outro. Foi Séneca que nos ensinou: “se queres julgar, compreende”. E de resto, exigir que se condene sem julgar e se julgue sem compreender é chantagem que deixou de funcionar com a opinião pública nos últimos tempos.
Ousemos então ver o que se aprende com a conspiração que a polícia inglesa conseguiu desmantelar. Ficam algumas notas, de que a primeira é essa mesmo: foi a polícia que desmantelou a conspiração, aparentemente com apoio dos serviços secretos paquistaneses. A polícia, note-se, e não os exércitos no Iraque. Estes, pelo contrário, são parte do problema e não da solução, porque (e aqui repito-me em apenas uma semana) tratar o terrorismo como questão militar só ajuda a perpetuá-lo. É dar aos terroristas a guerra que os terroristas querem.
Excluindo a opção militar, contudo, há muitas maneiras de não ficar de braços cruzados, a começar pelo trabalho com as comunidades de onde saem os terroristas. O adivinhómetro de Vasco Pulido Valente diz-lhe que a ideia de uma “minoria extremista que a grande e virtuosa maioria muçulmana condena” não passa de uma “tese oficial”. Os dados das pessoas que efectivamente estudaram este assunto dizem que, por uma vez, a tese oficial acertou. Entre os paquistaneses que vivem em solo britânico apenas 1% aprovou os atentados do 7 de Julho, embora haja 13% que considera os terroristas “mártires” e quase 20% que simpatiza com os seus motivos. Quem sabe quantos destes virão dos 80% que se opõem à Guerra do Iraque? Provavelmente todos. Mas isto quer dizer que há até espaço para 20% que não discorda da Guerra do Iraque, o mesmo número dos que simpatizam com os motivos dos terroristas e vinte vezes mais do que os que concordam com os atentados [dados Populus e ICM, para o Times e o Telegraph].
Nestes diversos números há outras tantas oportunidades. Oportunidade de isolar os terroristas dos não-terroristas. Oportunidade de ter a colaboração dos segundos na detecção dos primeiros. Oportunidade de conseguir agentes infiltrados que falem não só árabe, mas farsi, pashtun e urdu. Construir pontes com as comunidades imigrantes não é somente, em geral, a coisa justa a fazer como em particular a mais esperta e eficiente.
É bom saber, pelo sucesso da polícia inglesa, que muitas destas coisas estão a ser feitas. Era este o programa consensual — à escala mundial — a seguir ao 11 de Setembro, que a arrogância e incompetência de alguns sequestrou para aventuras imperiais no Médio Oriente. O problema é que a questão não se resume ao mal absoluto de Bin Laden. Ele sozinho não explode aviões. A questão está nas milhentas razões de cada um dos homens que ele consegue recrutar, algumas das quais lhes foram dadas de mão beijada pelo nosso lado.
O resultado é que estamos hoje muito pior do que poderíamos estar; não criando mais terroristas, teríamos apenas de lidar com os que sobrassem. Se queres sobreviver, compreende.
3 thoughts to ““Se queres julgar, compreende””
Caro Rui Tavares: Os meus parabéns pelas suas crónicas no Público. Continue o bom trabalho.
Excelente.
Nós no http://faltapapel.blogspot.com soprámos as 80 velas com El Comandante !!! Apareçam para uma fatia de bolo.