[do Público de 1 de Junho]

A explicação do “país profundo” é sedutora e útil: permite-nos varrer para debaixo desse tapete um monte de coisas embaraçosas. Mas é falsa e não resiste a um olhar mais atento.

Esta semana andámos entretidos com a notícia de que Fernando Ruas, Presidente da Câmara de Viseu, incitara os seus concidadãos a “correr à pedrada” os inspectores do ambiente, insistindo que estava a “medir bem as palavras”. Confrontado com a gravação feita na ocasião, Fernando Ruas não se atrapalhou e disse que apesar de “bem medidas”, as suas palavras não eram “para levar à letra”. “Também aqui na zona se utiliza ‘chegar fogo ao rabo’ e ‘uma corrida em pêlo’”, disse Ruas ao Diário de Notícias, “o importante é o significado”.

Qual será, então, o significado? As leituras nos media inscrevem-se na velha tradição do “Portugal profundo”, ou seja, a ideia de que coexistem dois países neste rectângulo, um deles sofisticado e o outro troglodita. Esta dicotomia aparece bem clara na ilustração que um dos melhores cartunistas nacionais, Bandeira, fez publicar no mesmo Diário de Notícias: sob a legenda “no país da banda larga”, vê-se um Fernando Ruas ainda na Idade da Pedra. Para um historiador, isto evoca irresistivelmente os nossos debates: é suposto que o reino fosse muito centralizado, mas na verdade os corregedores da coroa andavam muitas vezes corridos à pedrada (e à bosta…) por esse país afora.

A explicação do “país profundo” é sedutora e útil: permite-nos varrer para debaixo desse tapete um monte de coisas embaraçosas. Mas é falsa e não resiste a um olhar mais atento. Vejamos.

Em primeiro lugar: Fernando Ruas, eleito pelo PSD para Viseu e pelos seus colegas autarcas para presidente da Associação Nacional de Municípios, não é nenhum troglodita. Pelo contrário, é homem de muitos talentos: além de bom comediante, tem conhecimentos de etnografia e lexicografia (como se vê por aquele princípio de recolha de expressões idiomáticas populares), e ainda dá aulas de hermenêutica a quem o entrevistar, tudo isto polvilhado com a desenvoltura imprescindível a quem quer singrar na política.

Em segundo lugar, e mais importante: Fernando Ruas não está sozinho.

Não está sozinho na questão do ambiente. Emerge uma corrente de opinião segundo a qual a preservação é um obstáculo ao desenvolvimento económico do país. O Público de quinta-feira passada citava as opiniões de dois representantes da nossa direita instruída e urbana, Basílio Horta e Francisco Van Zeller. Para o primeiro, presidente da Agência Portuguesa para o Investimento, “vamos ter um problema sério” se não pudermos emitir mais dióxido de carbono e se não pudermos construir mais em áreas protegidas. Por pura curiosidade, eu gostaria que emitíssemos dióxido de carbono e construíssemos à vontade, apenas para saber qual seria depois o novo “problema sério” que justificaria então, depois de estragado o país, o atraso económico persistente.

Tampouco está sozinho entre os autarcas deste país. Em eleições recentes, houve esperanças, baseadas em sinais isolados, de que começasse a aparecer uma geração de governantes de seriedade impecável. Duas notícias do Público de ontem sugerem que ainda há um caminho longo a percorrer, mesmo nas únicas cidades que não pertenceriam ao “Portugal profundo”, Lisboa e Porto.

No Porto, rapidamente caíram por terra as ilusões sobre Rui Rio. A condenação que obteve de um colunista deste jornal, Augusto M. Seabra, pelo “insulto” de lhe ter chamado “energúmeno”, deixa uma mensagem clara aos potenciais críticos: não se metam com este homem.

A notícia que agora chega não desmente esta ideia. A Câmara Municipal do Porto passou a incluir nos contratos dos subsídios que atribui uma cláusula que obriga a outra parte a “abster-se de, publicamente, expressar críticas que ponham em causa o bom-nome e a imagem do município do Porto, enquanto entidade co-financiadora da actividade da sua representada”. Esta passagem revela um problema com as palavras, mesmo a um nível básico: os juristas da Câmara do Porto deveriam saber que não se “expressam críticas” mas sim que se exprimem críticas. Por outro lado, embora uma primeira leitura dê a ideia de que é a imagem do “município do Porto” que não pode ser criticada (o que já seria grave), acrescenta-se depois que se trata do município “enquanto entidade co-financiadora”, deixando a impressão muito desagradável de que certas palavras ou certos silêncios devem vir agarrados ao dinheiro e sujeitos às conveniências da fonte desse dinheiro.

Acontece que a fonte desse dinheiro não é o bolso de Rui Rio, mas sim o dos portugueses e dos portuenses em particular. E, independentemente da diversidade de opiniões sobre a vantagem de dar subsídios, uma coisa em que todos os cidadãos estão de acordo é que esses subsídios não devem servir para lhes retirar direitos que a constituição concede.

De Lisboa chegam notícias igualmente desanimadoras. Maria José Nogueira Pinto, vereadora eleita pelo CDS/PP, tentou excluir os imigrantes do acesso a um projecto de habitação promovido pela Câmara Municipal. A razão invocada foi a de que aquele empreendimento em particular, na freguesia da Ajuda, seria para uma “pequena burguesia urbana” e não para “o imigrante e o pé rapado”. A metáfora que encontrou para justificar a sua ideia fala por si: “isto não é uma fruteira onde se possam meter bananas, maçãs e laranjas e dizer que está tudo bem”.

Aparentemente, Nogueira Pinto não prevê a hipótese de haver imigrantes que não sejam pés-rapados: espanhóis que são médicos e enfermeiros, brasileiros que são publicitários e dentistas. Os “imigrantes de qualidade” de que tanto fala o partido da vereadora devem ter uma enorme vontade de viver numa cidade onde são comparados a fruta distribuída criteriosamente pelo poder político, em vez de irem para uma dessas capitais cujo modelo de desenvolvimento passam precisamente por atraírem estrangeiros. Perante os protestos da oposição, Nogueira Pinto desistiu e fez “um mea culpa: não deveria ter apresentado uma proposta inconstitucional”. Reparem: não uma proposta iníqua, nem discriminatória; por casualidade, meramente inconstitucional.

Como se vê, não é só Viseu que representa o “Portugal profundo”. As profundezas andam bem distribuídas; é até com uma surpreendente facilidade que, na nossa direita, chegam à superfície.

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