Agora, o que temos? Duas pessoas livres e adultas, que presumivelmente se amam, e que desejam casar. Por que raio vou eu decidir?

Sempre a trocar os olhos ao adversários, estes opositores ao casamento “gay”. Se bem me lembro, o casamento entre pessoas do mesmo sexo era uma coisa tão irrelevante que o país não deveria perder o seu tempo a discutir o assunto. Mas entretanto, novas ordens: afinal o assunto é tão relevante que precisamos de abrir um debate sobre o casamento em geral, sobre a família, sobre a vida amorosa, sobre tudo.

Um dia, quando estivermos todos de acordo sobre casamento, família, vida amorosa, tudo, poderemos dispensar aos nossos irmãos gay e irmãs lésbicas, amigos e amigos, amigas e amigas, um pouquinho da nossa atenção e, quem sabe, da nossa igualdade perante os direitos constitucionais.

Mas continuam os dribles. Antes: é um desperdício de recursos e de atenção que o parlamento gaste uma hora a mudar uma disposição do Código Civil, colocando-a de acordo com os programas dos partidos eleitoralmente maioritários e, acima de tudo, com a Constituição da República. Agora: não há melhor forma de empregar o tempo do que passarmos os próximos meses a preparar-nos para um referendo sobre o assunto.

E eu juro que gostaria de passar os próximos meses a preparar um referendo, e a fazer campanha pela igualdade no casamento, e a convencer uma maioria de portugueses a votar pela tolerância e pelo respeito pelo indivíduo. E gostaria de ganhar esse referendo, como aconteceu com o do aborto.

O problema é este: não posso.

***

No referendo do aborto eu, como todos os eleitores, tinha uma decisão difícil a tomar sobre como deve ser considerado um feto até às quatorze semanas: é vida? é uma pessoa humana? é apenas uma possibilidade? é parte da mãe? é alguma dessas coisas mas deve, dentro de certos limites, ser entendido no contexto da saúde pública e da situação social que leva ao aborto? etc. Uma vez que havia uma assimetria básica entre o eleitor, a mulher grávida, e o feto, convocou-se o eleitorado a decidir. E o eleitorado, com milhões de razões diferentes, decidiu.

Agora, o que temos? Duas pessoas livres e adultas, que presumivelmente se amam, e que desejam casar. Por que raio vou eu decidir? Por que terei eu de decidir? Serão aquelas pessoas menos do que eu? Terei eu tutela sobre eles?

Nunca ninguém me veio pedir conselho antes de casar; e ainda bem, porque eu nunca o daria. E recuso-me a ser conselheiro matrimonial de gente que não conheço, e a quem desejo apenas que sejam felizes, casados se assim o entenderem, sem a minha opinião ou a opinião do Dr. Ribeiro e Castro. Qualquer voto sobre isto seria sempre um voto sobre negar a certos cidadãos direitos de que a maioria usufrui.

Só vejo uma forma de votar sobre este assunto de forma universal e abstracta. Endosso esta alternativa de compromisso aos adeptos do referendo, na esperança de que lhes possa ser útil.

A única forma de votar sem discriminar é levar a referendo o casamento. Não o casamento “gay”, mas o casamento em geral. Se o Dr. Ribeiro e Castro acha que deve votar sobre o casamento dos outros, certamente não se importará que os outros votem sobre o seu casamento. Os adversários da igualdade no casamento têm opinião sobre o casamento dos outros, e querem ser a eles a decidir; por uma questão de equidade, não podem recusar que outros decidam sobre o casamento deles.

Se quiserem referendar o casamento de todos os cidadãos, homossexuais ou não, terão finalmente um argumento logicamente inatacável. Casamento: abolir ou não? Francamente, pergunto-me qual seria o resultado.

[do Público]

13 thoughts to “Uma sugestãozinha

  • Tiago

    Ok, mas de logica nao se faz politica.
    Os argumentos da direita baseiam-se na hipotese de o casamento gay ir diminuir o valor (moral, etc) do casamento em geral e fazer os casados ‘menos felizes’ (i.e. nao satisfaz a lei de eficiencia de Pareto, para os mais intelectuais).
    Gostaria de ver intelectuais de esquerda (como tu, ou outros) a argumentarem que nao, que o casamento sera uma coisa muito mais bonita e boa se gays e lesbicas o fizerem tambem.
    Como disse ha algum tempo aqui sobre este mesmo tema, o valor do casamento esta naquilo que produz em termos de estabilidade para os individuos casados mas tambem para a sociedade.
    A esquerda, particularmente a ‘nova esquerda’, tende a ver o casamento como uma coisa antiguada, vetusta. Talvez seja preciso re-inventar o casamento, e talvez o casamento gay seja parte desse processo.
    Laissez faire so’ desvaloriza a coisa, o que acaba por contradizer a abertura aos gays e lesbicas: agora que ja nao vale muito, e nao e’ tao importante, podem entrar…?

  • Augusto Küttner de Magalhães

    Bem, como ainda nos deixam pensar e falar, direi que o casamento entre pessoas do mesmo sexo, me faz confusão, dado parecer-me que não “encaixa”.
    Que a diferença entre mulher e homem, não só no fisico, mas em TUDO é “diferente”….logo encaixam.
    Mas se pessoas do mesmo sexo querem viver juntas, que o façam, como hoje já o fazem pessoas heterosexuais.
    Penso que seria muito, muito, muito mais necessaro estarmos a pensar em legalizar o Testamento Vital e a Morte Assistida, dado que tal como o Aborto é algo que só “usa” quem quer, mas é crime fazê-lo….e tantas vezes tão necessario…

  • João Martins

    Tiago, não é muito difícil de argumentar que o facto de o casamento ser alargado a pessoas do mesmo sexo o torna mais bonito. Note bem, eu sou de esquerda e penso que o casamento é muito importante. Se você está a insinuar que o casamento é bonito por ter carácter exclusivo, parece-me que é você que estará inconscientemente a banalizar uma coisa acima da discussão entre a esquerda e a direita.

    O que me parece evidente é que no capítulo da não discriminação, há poucas coisas tão simples de alterar como esta. Não se consegue de um momento para o outro impedir a maioria dos casos de discriminação racial, ou dotar todos os prédios de rampas de acesso a deficientes. Neste caso é simples, rápido, barato, ninguém fica a perder e alguns ganham. Quer coisa mais linda do que esta?

  • Nuno Ferreira

    Penso que a discussão está feita, os portugueses votaram nas últimas eleições e os partidos que representam a maioria dos votos tinham essa medida prevista em programa eleitoral, com tanto desemprego, índicios de corrupção e outros problemas importantes, ainda existem algumas pessoas bens instaladas na vida a tentar-nos fazer perder tempo com discussões destas.
    Pessoalmente penso que até óptimo para a Economia, mais casamentos, mais impostos, mais pessoas felizes, mais produtividade, realmente acho que o Rui Tavares sintetiza isso muito bem no seu artigo, e põe os pontos nos is.
    Entendo q a Igreja Católica seja contra, mas que querem fazer, perseguir as pessoas como fizeram no passado, restringir liberdades, proibir a homossexualidade? Acho esta questão realmente secundária, não sou activista desta causa, mas acho que o problema está mais que resolvido.
    Meus senhores estou mais preocupado com o estado de bagunça em que o meu país mergulhou, com a pouca vergonha que vejo à minha volta, e acho que devem ser discutidos caminhos para salvar a Democracia, porque cada vez mais parece que estamos numa Democracia tipo Federação Russa ou da República das Bananas, e a última vez que isto aconteceu, veio um senhor de Santa Combadão e foi o que se viu…

    Cumprimentos

  • Augusto Küttner de Magalhaes

    Interessante, que sempre que se faz a abordagem a temas fracturantes, muito de agressividade vem à tona. Não comprrendo o casamento entre Pessoas do mesmo sexo. Não compreendo. Ponto/ pragrafo. Mas se for legislado, quem o quiser utrilizar que o faça.
    Sendo que acho indispensável perdermos algum tempo a falar do Testamento Vital e da Morte Assistida, que defendo com base na dignidade de viver e na dignidade de morrer. E assusta-me ver, e vejo, tanto gente sem dignidade na morte, a arrastar-se “vegetalmente na vida”. Pelo que dar escolhas a quem assim possa “escolherem morrer dignimente”r seria tremendamente importante, tal como foi com a legalização do aborto!!!!

  • Eu Leio Jornais

    @Tiago “Gostaria de ver intelectuais de esquerda (como tu, ou outros) a argumentarem que não, que o casamento será uma coisa muito mais bonita e boa se gays e lésbicas o fizerem também”
    Não sou intelectual de esquerda, apenas uma pessoa com algumas perguntas e começo com: Os gays não são gente como tu? Com pai e mãe, amigos e amigas? Gente que vai ficar feliz por celebrar o casamento deles?! Mas porque carga de agua o teu casamento teria de ser mais bonito o casamento entre dois amigos meus gays? Enquanto o argumento da direita não satisfaz a lei de Pareto(huh!!!?!?!), o teu comentário não satisfaz lógica nenhuma.
    @Augusto Küttner Não acho que seja agressividade mas sim paixão e talvez um pouco de frustração. É que isto devia ser uma daquelas coisas óbvias para toda gente. Estamos a falar de “dar” os mesmos a direitos a cidadãos (e cidadãs) que já têm os mesmos deveres e obrigações. Não te parece incrível! Acredito que te possa fazer um pouco de “impressão” imaginar pessoas do mesmo sexo juntas, mas agora não vamos retirar-lhes os direitos (que lhes são devidos), só porque nos faz “impressão”.
    @João Martins & @Nuno Ferreira Estamos de completo acordo E ao Rui Tavares, obrigado por teres escrito isto…

  • Augusto Küttner de Magalhães

    “É que isto devia ser uma daquelas coisas óbvias para toda gente.
    “…mas agora não vamos retirar-lhes os direitos (que lhes são devidos), só porque nos faz “impressão”.”

    Caríssimo, cá está a agressividade, se não pensas como eu………..não é óbvio, tens más impressões.

    penso que posso pensar o que é óbvio para mim e posso ter algumas “impressões” e expressá-las.

    Sendo que me parece mais óbvio, que a vida deva ser vivida com muita dignidade , mas a morte também. E assusta-me não estarmos a pensar seriamente nisto.
    Dado que com uma pancada na cabeça passamos a viver sem dignidade e a nem morrer com dignidade.
    Logo perderia mais tempo a pensar em testamento vital e na morte assistida, que me parece mais óbvio e não me faz impressão.

    Mas esta é a m/ opinião, podendo ser errada. Mas é minha, e por alguns motivos, cada vez me parece mais necessário, urgente caminhar-se “nesse caminho”.

    Tal como se caminhou, bem na m/ opinião no aborto.

    Preocupa-me a forma como se está vivo…….

    aküttner

  • Tiago

    Joao Martins e Eu Leio Jornais parece-me que leram o contrario do que queria dizer na minha mensagem. Mea culpa.

  • Eu Leio Jornais

    Aqui esta um link uma senadora de New York, Diane Savino, ela conseguiu dizer tudo que sempre pensei acerca do casamento gay. Isto, do ponto de vista de uma pessoa straigh como eu.
    Sucinta e assertiva, um discurso que todos podemos entender.
    http://www.youtube.com/watch?v=dCFFxidhcy0

  • Bruno

    O que é que o casamento entre pessoas do mesmo sexo tem a ver com o assunto testamento vital e morte asistida?

  • Julio Pereira

    Sobre este assunto penso haver duas questões:

    – Esta lei já poderia ter sido aprovada na legislatura anterior, não foi porque o Sócrates precisava de trunfos no baralho para esta minoria absoluta, fazendo com que outras questões mais incómodas fossem esquecidas. O casamento homossexual pouca importância têm comparado com o desemprego crescente, a corrupção de colarinho branco, etc
    – Depois há uma questão que se prende com a natureza humana. As pessoas que nasceram homossexuais não escolheram nascer homossexuais, foi algo imposto pela sua natureza humana, não foi um comportamento adquirido, não é um vicio, não é um comportamento desviante, é algo intrínseco á sua natureza, logo é natural.
    Comportamento desviante é roubar e matar, atentar contra as finanças públicas, são os políticos a fazer negociatas com empresas privadas para que quando a teta do estado secar possam ir para administradores dessas empresas, isso sim é desviante, contra isso devemos protestar, isso é imoral, mas não só a sociedade premeia a mentira como valoriza a hipocrisia.
    Que os homossexuais se casem e celebrem o amor, é bom, deveria haver mais amor no mundo.

  • Maria Estácio

    O q está subliminar e in-conscientemente ‘presente’,para os q estão contra, é o horror à homossexualidade(gente esquisita,chegarão a ser gente?)ou a ‘não conveniência'(para quem dá + jeito normalizar-se, amedrontada e hipocritamente)ou para quem os’gays’ seriam 1 ‘cultura’ superior,q não deveria querer normalizar-se. A santificação do casamento q os ‘gays’ iriam conspurcar,diz respeito,antes,à homofobia e pretensão ‘ontológica’ heterossexual e não,como deveria,à qualidade,autenticidade,liberdade e dignidade(q existem tb sem casamento)duma relação e projecto a dois (como sabemos,os casamentos reais e ‘normais’ encarregam-se dessa dessacralização). E sim,pq de pessoas se trata,com iguais direitos,deveres e dignidade,o nome e o símbolo DEVEM MANTER-SE.

  • Maria Estácio

    Quereria pôr um factor de ponderação na aparente(e não)’radicalidade’ do meu último texto. Não considero minimamente que ‘todos’ se devam ‘assumir'(para gáudio de terceiros),num mundo continuadamente cruel,rasca e indiferente,como na lapela pôr que gostamos de batatas fritas. Nem os que não o fazem,como cobardes e hipócritas,tout court. Nada disso.A auto-r-idade de cada um,consigo e os outros,está também em não pedir licença e desculpa de ser,existir e estar ali. Óbvio que sem afrontar os demais. Como diria alguém,andar de cara levantada.Seja qual for a variante(-ações)sexual. E ser farinha do mesmo saco,por gostarmos de batatas fritas…

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