Quem quer cortar na despesa pública nunca se lembra de nos dizer como é que diminuirá a despesa privada.

Há coisas que nunca vão pôr em risco a opinião de alguém. Uma delas: escrever que “é preciso cortar na despesa”. Posso escrevê-lo quando faz chuva, quando faz sol, quando faz vento e quando faz nevoeiro. Nunca parece mal, nunca parece pouco sério, é sucesso garantido. Em Portugal, então, deve haver um qualquer gene escondido que predispõe a nação para este discurso: nós portugueses nascemos sabendo que fizemos alguma coisa mal, apenas precisamos que alguém nos diga o que é e acreditaremos.

Dizer que é preciso cortar na despesa tem até um efeito curioso. Isenta quem o disser de qualquer relação com a realidade, de qualquer preocupação com as consequências do que dizem, de qualquer necessidade de avaliar as circunstâncias e adaptar o discurso ao contexto.

Diz-se que toda a gente tem de cortar nas despesas, e aplaudimos inclusive o corte nas despesas daqueles que nos compram coisas. Ao mesmo tempo, deseja-se que Portugal diminua as importações e aumente as exportações. Mas exportar para onde, se os outros cortam nas despesas? Não importa.

Diz-se que o estado tem de emagrecer e que a nossa dívida pública é arriscada, mesmo quando se sabe que se há alguma coisa assustadora na nossa economia, essa coisa é a nossa dívida externa (privada). Foram os nossos bancos que se endividaram mais do que praticamente quaisquer outros na União. Ora quem quer cortar na despesa pública nunca se lembra de nos dizer como é que diminuirá a despesa privada. Será por magia? A única coisa honesta a fazer seria admitir que não sabemos: pode diminuir a despesa pública e diminuir a privada ou pode também diminuir a despesa pública e aumentar a privada, o que nos deixaria numa situação aí mesmo preocupante. Mas não interessa.

Diz-se, a nível europeu, que é preciso diminuir a despesa agora para evitar a inflação. Quem o diz esquece-se porém de um pormenor: qual inflação? O risco de inflação é agora menor do que o risco de deflação, que aumenta a cada corte de despesas nesta fase — e que é mais intratável. Mas não há problema.

No fim da presidência Hoover, no início dos anos trinta, um Secretário do Tesouro norte-americano chamado Andrew Mellon proclamou que a solução era “liquidar emprego, liquidar ações, liquidar a lavoura, liquidar no imobiliário” — em inglês a fórmula ficou conhecida por “liquidate, liquidate, liquidate” —. Em teoria, parecia boa ideia; em tempos de incerteza gastar menos e poupar mais é boa ideia para cada um de nós. Infelizmente, é péssima ideia quando seguida por todos. Significa falências, desemprego e baixa de salários num momento em que a economia tem menos força para compensar.

O conselho de Mellon esteve na origem da Grande Depressão. Não que isso faça pensar duas vezes aos seus descendentes. O “liquidate, liquidate” está aí No Expresso, Daniel Oliveira chamava a este o “discurso da vuvuzela”: sem melodia, sem ritmo, sem contraponto, sem variação. É um único som constante e repetitivo, indiferente à realidade ou às consequências. Sim, é verdade: algumas dívidas das maiores economias estão no nível mais elevado desde a IIª Guerra Mundial. Mas também é verdade que esta crise é a maior desde a IIª Guerra Mundial, e ainda não acabou. Desta forma pode até ser que se agrave.

De Merkel a Cameron, de Passos Coelho a Medina Carreira, a Banda Filarmónica Vuvuzelense não liga e segue indiferente a sua marcha.

One thought to “Uma sinfonia de vuvuzelas”

  • Maria Estácio

    Gostei mt deste texto,no conteúdo e na forma. És capaz de ser tão incisivo qt engraçado (no melhor sentido).

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