Um bom zombie nunca morre à primeira.
Em 2001, após o 11 de Setembro, a Administração Bush começou a pilhar em segredo os dados das transferências bancárias europeias. Fizeram-no através dos servidores do consórcio bancário SWIFT, que estavam em solo americano. E fizeram-no sem a mínima intenção de avisar os seus maiores amigos e aliados do que estava a acontecer. E teriam continuado a fazê-lo se não tivessem sido descobertos pela imprensa em 2006.
Depois do escândalo, a SWIFT – Society for Worldwide Interbank Financial Transfers – acabou por mudar todos os seus servidores para solo europeu. Só que aí os EUA negociaram com o Conselho da União Europeia um acordo segundo o qual nós continuaríamos a ser pilhados, mas com o consentimento dos nossos governos e da Comissão Europeia. Que o deram, evidentemente, e às escondidas, 24 horas antes de entrar em vigor o Tratado de Lisboa.
Só que aí matámos o zombie pela primeira vez. Numa das coisas boas que o Tratado de Lisboa tem, o Parlamento Europeu ganhou o poder de rejeitar acordos internacionais assinados em nome da UE. E foi o que fizemos. Nem foi difícil: bastou perguntarmo-nos se o Congresso dos EUA aprovaria enviar os dados das contas americanas para uma potência estrangeira. A resposta era negativa, o voto foi também. Acordo rejeitado.
Ato contínuo, a Comissão começou a negociar um novo acordo com os EUA, sob mandato do Conselho Europeu para – adivinharam – se poder enviar dados em bloco para os EUA, desde que sob controlo de uma “autoridade judicial independente”.
E aí matámos o zombie pela segunda vez. Numa resolução do Parlamento Europeu, declarámos que a transferência em bloco de dados bancários europeus era contrária à lei. No quadro da luta contra o terrorismo justificar-se-ia enviar os dados pontuais dos suspeitos e acusados de atividades terroristas, mas não dos 99% de cidadãos inocentes. Parecia-nos justificado e sensato. E parecia a alguns deputados – a mim nem por isso – que arrumava o assunto.
Só que aí – eu sei, é a terceira vez que uso esta expressão, mas é assim que se contam os filmes de zombies – apareceu o acordo de novo. Onde se dizia “autoridade judicial independente” passou a aparecer a Europol, que não é nem judicial nem independente, e que passará a carimbar os pedidos dos americanos (nos quais tem interesse direto, pois recebe pistas policiais em troca – um caso clássico de pôr o bêbado a cuidar da garrafeira). E onde se dizia “dados em bloco”, a expressão deixa de aparecer para não violar a resolução do parlamento. Mas a realidade não muda. Segundo fomos informados em Washington, vão ser enviados cerca de 90 milhões de mensagens por mês, ou mais de mil milhões por ano.
O acordo vai ser votado nesta semana em Estrasburgo, em conveniente procedimento de urgência. Os grupos Popular, Socialista e Liberal preparam-se para o aprovar, declarando que temos aqui uma grande vitória. Em privado, sabem que o negócio é péssimo, mas dizem-nos que a chantagem dos governos sobre as suas carreiras políticas foi mais forte do que o costume – e eles, coitadinhos, assustaram-se. A imprensa também anda distraída, e assim os cidadãos não podem fazer o seu papel, que seria de escrever aos 736 eurodeputados a perguntar o que se passa. O zombie está mais forte do que nunca. Sendo realista, parece-me que desta vez ele ganha. Resta vender cara a pele.
3 thoughts to “Uma derrota anunciada”
Sabe de alguma petição organizada que permita aos cidadãos europeus resmungar em uníssono?
Esta crónica foi transcrita no ‘Sorumbático’ (http://sorumbatico.blogspot.com) onde, até ao momento, recebeu os seguintes comentários:
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1) Ribas
Mirabolante.
Mas, para perceber realmente o alcance de tamanha tramóia, agradecia que alguém fizesse o favor de me explicar, em que é que esta troca de dados pode afectar os tais 99% de cidadãos inocentes?
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3) – GMaciel said…
Numa palavra: nojo!
Nojo da, infelizmente, potência mundial, nojo desta Europa carcomida e servil, nojo desta corja de pulhas tornados os príncipes-perfeitos da política e nojo duma população anestesiada, deslumbrada e inconsequente.
Já agora, igual nojo por esta novel escrita que desfigura a identidade da nossa língua e, consequentemente, da nossa História e raízes.
Nojo
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3) – XR said…
@Ribas:
Da mesma forma que uma menina de sete ou oito anos (inglesa de ascendência indiana) foi impedida de viajar no avião com os pais porque o seu nome constava numa lista de suspeitos de terrorismo, estamos sujeitos a que os nossos dados sejam escrutinados e usados sabe-se lá para provar o quê. E confundidos com outros também.
Nós, portugueses, talvez na maioria não tenhamos que nos preocupar, pois onde estão as grandes somas que poderiam despertar a atenção dos pseudo-caça-terroristas? No meu bolso, na minha conta bancária não estão…
Mas cá está, arrisco-me a que uma qualquer pessoa entenda que sou uma espia disfarçada mesmo que a minha nacionalidade esteja perfeitamente identificada; arrisco-me a que um dos meus filhos seja proibido de viajar por ter o mesmo nome de alguém que andou aí a fazer das suas (e entenda-se aqui “sabe-se lá o que eles forem considerar como ameaça”).
Acedem a tudo, escrutinam tudo.
Bisbilhoteiros profissionais disfarçados de caça-espiões.
E a Europa a baixar as calcitas para receber o supositório que o tio Sam diz que lhe vai fazer muito bem…
Olha lá, oh R.T. e o célebre programa Echelon que permitia ler tudo e todos os mails (e telefonemas ?) via palavras-chave, já foi desactivado ??
Na posição em que actualmente te encontrs, se calhar é te dado saber.
António Sobral Cid.