Quando se dirige aos homens do Reichstag e lhes pergunta “o que é a Europa, meus deputados”? Aí, lança-se numa longa e rebarbativa passagem que é o Hitler que esperaríamos que ele fosse: um homem obcecado por questões de raça e de sangue, de que fala com tanta verve que é como se os seus fantasmas estivessem ali com ele.
Há setenta anos e três dias — a 11 de dezembro de 1941 — Adolf Hitler fez um discurso perante o Reichstag para declarar guerra aos Estados Unidos da América. Um discurso impressionante a vários títulos, permanentemente mudando de estilo e de sentido quase como se fosse da autoria de alguém com divisão de personalidade.
É sempre perturbante pensar ou escrever ou falar sobre Hitler, e perturbante também lê-lo, por aquilo que esperamos e por aquilo que não esperamos. O discurso de há setenta anos e três dias tem, por exemplo, várias invocações à “Divina Providência”, à “vontade de Deus”, agradecimentos ao “Senhor do Universo” que surpreenderão quem tiver ouvido dizer (por exemplo ao atual Papa) que Hitler era uma espécie de descrente. Não era nada disso, como sabe quem se informou, mas mesmo assim a recorrência da retórica religiosa no seu discurso é notória.
Impressionam mais ainda, porém, as passagens em que Hitler tenta fazer passar a imagem de um homem razoável, inclinado a negociar, desejoso de paz, citando agora um tratado assinado, um pouco depois um discurso de um político estrangeiro. Parece quase um político normal, este homem, articulando os seus artifícios, escondendo as suas reais intenções, recorrendo à dupla linguagem, como fazem ainda hoje muitos políticos.
A sonolência dessas passagens não nos prepara para os momentos em que Hitler verdadeiramente perde (aos nossos olhos) a tramontana. Quando se dirige aos homens do Reichstag e lhes pergunta “o que é a Europa, meus deputados”? Aí, lança-se numa longa e rebarbativa passagem que é o Hitler que esperaríamos que ele fosse: um homem obcecado por questões de raça e de sangue, completamente levado por um torvelinho de teorias marteladas sucessivamente sobre judeus e negróides, persas e helénicos, normandos e anglo-saxões, de que fala com tanta verve que é como se os seus fantasmas estivessem ali com ele.
(Em vez disso, com ele estavam homens assombrados pelos mesmos fantasmas. Dois dias depois, Goebbels decidiu explicar as palavras do seu Führer “não eram palavras vãs” e que implicavam “a destruição dos judeus” que iriam “pagar com as suas próprias vidas”. E disse-o em público. Sabendo das consequências, é impossível pensar nisso sem sentir um frio na espinha.)
Uma parte do seu discurso de que eu nunca tinha ouvido falar é uma narrativa paralela em que Hitler compara a sua vida com a do presidente Roosevelt (Franklin Delano), a partir da coincidência de terem chegado ao poder no mesmo ano. Hitler rebaixa-se, faz questão de dizer que era um zé-ninguém, um soldado raso, um morto de fome, quando comparado com Roosevelt que tinha nascido no meio da riqueza, estudado nas melhores universidades, sido beneficiado com os melhores empregos.
Tudo isso é apenas preparação para um ataque às políticas económicas de Roosevelt. Aí aparece um Hitler anti-keynesiano. Ambos os países, a Alemanha e os EUA, tinham milhões de desempregados e as finanças públicas em desordem em 1933, alega Hitler, que se gaba de ter resolvido ambos os problemas. Quanto a Roosevelt, acusa ele, “aumentou enormemente a dívida do seu país, desvalorizou o dólar, perturbou a economia… o New Deal deste homem foi o maior erro jamais cometido por alguém… num país europeu a carreira deste homem teria terminado num tribunal por desperdiçar o tesouro público, e dificilmente evitaria uma pena por gestão criminosa e incompetente”.
Já na altura os EUA tiveram bastante sorte em ter um Roosevelt em vez de um Hitler. E ainda bem que ninguém se lembrou (então) de proibir o keynesianismo, nem de levar políticos a tribunal por políticas de expansão da economia.
9 thoughts to “Um discurso de Hitler”
Infelizmente tão atual…
Aconselho a leitura de um livro muito interessante: “Keynes Betrayed: The General Theory, the Rate of Interest and ‘Keynesian’ Economics” de Geoff Tilly. Hoje estaria Keynes ao lado do Sr. Rui Tavares ou da Sra. Angela Dorothea Merkel? Provavelmente ao lado da Sra. Merkel. Surpreendente? Talvez não.
Sr. António Parente
mais keynesiano que o New Deal de Roosevelt (que como se sabe foi um plano de investimento na indústria militar como modo de preparação para a guerra e assim adquirir hegemonia imperialista) foi o plano de recuperação económica da Alemanha, que em 1939 já estava em condições de rivalizar com a Inglaterra em termos de mercado e se preparava para a campanha de ódio que lançou contra o bolchevismo. Foi por estas duas causas, nacionalismo e anti-comunismo, que o povo alemão seguiu em peso a politica nazi de Hitler. É perturbante admiti-lo, mas foi assim que se passou. Caríssimo, aconselho-o vivamente, como historiador, a abandonar os comentários sobre estados de alma, nomeadamente sobre aquilo que Normman Finkelstein designou por “indústria do holocausto”. Senão qualquer dia estamos a aceitar as efabulações bíblicas como fundamentação para produzir História
Uma vez mais muito necessario o que escreveu.
E Hitler, sendo austriaco, sendo um pintor falhado, tramou meio mundo, com a Alemanha a seus pés!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
Um livro muito interessante é A Biblioteca Privada de Hitler, que nos mostra como este tipo, sem ler muito, ia aos livros, unicamente buscar o que lhe interessava,.,,,,,e era mau…………………….
Realmente,o nível de neofascismo=neoliberalismo no Mundo é fortíssimo além de ser patrocinado pela imprensa corrupta e corporativa dirijida por pessoas anteriormente ligadas a partidos políticos ou a grandes empresas.
A social democracia foi abandonada pelos partidos Europeus,hoje só temos a farsa da 3 via e a direita extremista que todavia é sempre catalogada de centro direita o que é extraordinário.
Aconselho vivamente a lerem o programa de Peggy Nash,essa sim,uma verdadeira social democrata de centro esquerda com soluções exequíveis.
Já agora,o Rui parece não interagir com os seus leitores?Porquê?
E numa onda de um artigo anterior, como forma de comemorar os primeiros quinze dias do novo governo belga, eis que os ratings descem. Pelo menos durante “a vingança do anarquista” não valia a pena fazer mais do que ameaças, porque ninguém podia tomar medidas de fundo. Dando razão ao Rui, com um governo começam as dificuldades. O anarquista de facto ri-se…
Rui Tavares sou um grande fã do giornado bruno e fiquei maravilhado quando vi que traduziu o livro tratado de magia.
O que acontece é que esse livro já se encontra esgotado em todo Pais.
Não conseguiria arranjar um meio para facultar o livro?
Puxa, gente sábia!
Um blogue é muito mais do que eventuais lições de história.
Como se a vida fosse só isso.
É muitíssimo mais!
A falta de horizontes, o desespero, o medo, a fome, a raiva, a indignação, tudo isto, que produz estados de alma, também produz História, francamente!
Às tantas é isto mesmo o acelerador da evolução.
não entendi porra nenhuma