A sociedade contemporânea precisa de uma internet livre, justa e igual para a ONG, a banda de garagem, a empresa da esquina ou a companhia multinacional.

Lembra-se quando as traduções automáticas do Google produziam resultados ridículos? Já experimentou recentemente traduções automáticas do Google e reparou como a qualidade delas melhorou enormemente?
É interessante conhecer a história desta evolução. Ela começa por ser uma lição de linguística e acaba sendo uma lição de política.
Primeiro, a linguística. Uma definição simples de “língua” consiste em dizer que ela é um conjunto de significados mais um conjunto de regras.
Quando a Google tentou ensinar línguas aos seus computadores, quis fazê-lo dessa forma, dando-lhes os significados, as regras, e tentando que eles fizessem o trabalho da mente humana. Só que os computadores não pensam (ainda?) linguisticamente como as mentes humanas. Numa tradução, a máquina poderia apanhar todas as palavras bem e, todavia, o sentido geral ser absurdo.
Até que a Google mudou de estratégia. Em vez de ensinar gramática aos computadores, usou aquilo em que eles já eram bons: estatística. Hoje, a máquina não “entende” a frase: limita-se a procurar entre milhares de exemplos de traduções semelhantes e sair-se com a mais provável. As traduções melhoraram muito. O segundo parágrafo deste texto fica assim em inglês, sem nenhum retoque meu: “It is interesting to know the history of this development. It starts as a lesson in linguistics and ends up being a lesson in politics.”
Ah, e então a tal lição de política?
Ei-la: para encher as suas bases de dados com milhões de traduções, onde foi a Google buscá-las? Entre outras, às traduções para 22 línguas do Parlamento Europeu, pagas pelo contribuinte. O material disponível é gratuito, e se mesmo assim a tradução não for boa, você pode ajudar a Google a melhorá-la, oferecendo-lhe o seu trabalho, também gratuito.
Agosto é o melhor mês para lançar uma guerra: um lobo em pele de cordeiro. Nesta época em que as redações estão meio-vazias, os jornalistas que restam ficam de atalaia. Algo de terrível está para acontecer: uma guerra entre Israel e o Líbano, como em 2006; um golpe de estado no Kremlin, como em 1991.
Este ano, já houve um fogacho no Líbano e Moscovo está rodeada de fogo. Mas a guerra mais importante — e discreta — foi lançada na internet. A Google e a gigante de telecomunicações Verizon negociaram um acordo que pretende mudar as regras de trânsito na rede.
Nas regras de trânsito reais, um semáforo vale o mesmo para um condutor rico ou pobre. E assim é na internet. Mas nas regras de trânsito que a Google e a Verizon cogitam implementar, o condutor poderoso (como a Google) passa a dispor dos sinais verdes que a Verizon lhe der; nós outros encontraremos mais luzes vermelhas ou amarelas. Isto significa, como diz Paulo Querido no Correio da Manhã, “o fim da igualdade de oportunidades, para quem cria e produz, e o fim da liberdade de acesso para quem consome”.
Esta é uma guerra declarada ao melhor repositório de conhecimento, ação e desenvolvimento de que a humanidade dispõe. A sociedade contemporânea precisa de uma internet livre, justa e igual para a ONG, a banda de garagem, a empresa da esquina ou a companhia multinacional.
Essa internet somos nós todos. E as grandes empresas têm tendência a esquecer de quanto nos devem, principalmente quando têm a sua crise da meia-idade, e começam à procura de expedientes para empurrar a concorrência para trás. Quando a Google vier reivindicar privilégios, perguntem-lhes onde foram eles buscar as traduções.

3 thoughts to “Traduzam-se para a guerra

  • Pedro

    Gostaria de o convidar para se juntar a nós, no meu Blog-Project: http://chainsofdifference.blogspot.com

    Obrigado. Pedro

  • Carlos Rodrigues

    A Internet é um mundo complexo e sofisticado que se faz à base de muitos negócios e interesses económicos e políticos, podemos ver isso no caso da china e das restrições impostas pela google (EUA).

    No entanto também é verdade que hoje em dia muitos dos ataques cibernéticos têm mais uma vez motivações económicas e politicas e encontram-se na lista do FBI como uma das três maiores ameaças no panorama mundial.

    Mais grave no meu ponto de vista é a quantidade de ataques que podem ser realizados pelo google (com ou sem traduções) e quase de certeza que não vai existir sinais nem semáforos de proibição para essas pesquisas, pois se o google pode ser o motor de busca mais importante hoje em dia para o bem, também o pode ser de igual forma para o mal e mais uma vez, sem travão à vista!

  • André

    A Google quer garantir que os seus serviços chegam ao utilizador final rápida e eficazmente. Para mim soa bem porque utilizo vários produtos deles (gmail, docs, reader, google.com). Os produtos deles são melhores, mas reconheço os perigos de deixar avançar esse monopólio: a Google detém uma quantidade absurda de informação sobre os seus utilizadores e essa informação está alojada em solo americano. Qualquer tribunal Americano pode exigir a entrega de informação, e isso já aconteceu no passado em que foram entregues excertos. Tudo corre bem agora em que toda a gente está feliz, mas imagino um futuro próximo em que a Google alterou as regras do trânsito, comprou o facebook, detém dados acerca de grande parte da população mundial e a CIA tem acesso total a esses dados. Big brother? E em caso de guerra quem venceria um exercito que sabe tanto sobre o adversário? O controlo da informação sempre foi uma preocupação humana, mas essa informação entrou em exponencial nos ultimos 5 anos e é urgente a priorizar esta questão. Qualquer acção por parte de monopólios informáticos, seja da Google ou de outra empresa qualquer, deve ser debatida por todos os governos.

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