Havendo folga, a descida deveria ser no IRS: uma folga para as pessoas, e não para as empresas, permitiria às famílias pagar dívidas, poupar, ou consumir. A economia agradeceria.

O governo tinha dito que não vinha aí um novo pacote de austeridade. Uma das curiosidades da apresentação do orçamento de estado, ontem, era saber com que inventividade semântica conseguiria o governo não se desmentir, uma vez que para atingir as metas previstas em austeridade seria necessário fazer cortes de cerca de quatro mil milhões de euros, 20% acima do que antes estava anunciado.

A resposta foi dada ontem pela Ministra das Finanças: impossibilitada a redefinição do significado da palavra “austeridade” e evitada a redefinição do significado da palavra “pacote”, Maria Luís Albuquerque explicou que a chave estava na palavra “novo”. É que, vejam bem, este não é um novo pacote de austeridade, este é “o mesmo” pacote de austeridade. Neste contexto, “novo” deixou de querer dizer “aplicado pela primeira vez” e “o mesmo” passou a querer dizer “algo que já tínhamos anunciado portanto é como se já tivesse acontecido”. Um pouco depois, o porta-voz do PSD insistiu que este era “o mesmo” pacote porque as suas medidas já tinham sido anunciadas pelo primeiro-ministro no mês de maio, apesar de algumas das medidas anunciadas não estarem no pacote, e estarem no pacote algumas que não foram anunciadas, este pacote não é novo, é o mesmo, é algo que já foi, apesar de ainda ir acontecer.

Basta. Basta destes pantomineiros orçamentais.

Este orçamento, como se viu, corta em tudo o que mexe.

Tudo? Não. Há um irredutível setor que não só resiste à austeridade, como tem uma folga. É essa folga o corte no IRC. O governo decidiu que, no meio de mortos e feridos, as empresas merecem uma descida de impostos.

Esta descida dos impostos das empresas, noutro momento, poderia ser uma normal decisão de política fiscal. Feita agora, trata-se de uma injustiça, um erro e uma perversidade.

Uma injustiça, porque com o agravamento dos níveis de austeridade para o cidadão comum, direta e indiretamente (através dos cortes no estado), a descida de impostos para as empresas se resume a tirar a Pedro para dar a Paulo, sendo que Paulo inclui algumas das grandes empresas que mudaram a sua sede fiscal para países onde o IRC é ainda mais baixo, chegando a níveis a que a descida proposta não chega. Nestes casos, está-se mesmo a beneficiar o prevaricador sem qualquer esperança de que ele se emende.

Um erro porque a descida no IRC não vai induzir crescimento económico. É que entretanto — lembram-se? — os salários continuam a ser cortados. Os trabalhadores e as famílias diminuirão ainda mais o consumo. A descida no IRC não justificará contratar mais trabalhadores num momento em que ninguém compra. Havendo folga, a descida deveria ser no IRS: uma folga para as pessoas, e não para as empresas, permitiria às famílias pagar dívidas, poupar, ou consumir. A economia agradeceria.

E é por isso que estamos perante uma perversidade. Ao descer o IRC, o governo sugere que afinal há folga, no momento em que corta em tudo o resto. Perde assim o argumento mais forte perante o Tribunal Constitucional (de que não há mais onde cortar), e isto já não pode ser por incompetência, mas simplesmente pela vontade de fazer do TC uma força de bloqueio. O cerco continua.

(16 de Outubro de 2013)

One thought to “Tirar a Pedro para dar a Paulo, SA”

  • António M P

    Absolutamente certo! O sub-título ou lide (ou lead) do artigo diz tudo, mas diz mesmo tudo em poucas palavras. Da descida do IRC, o que se tem por garantido é que uma boa fatia será para enriquecer mais os beneficiários dos lucros. A descida do IRS traria todas as vantagens anunciadas na descida do IRC, sem os seus inconvenientes… para a economia.

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