O que não muda contudo, é o velho debate sobre se a tecnologia nos faz melhores ou piores. Por mais voltas que dê, esse debate corre o risco de ignorar uma coisa: o que deve em primeiro lugar fazer-nos melhores (esperemos) ou piores é uma coisa muito simples: nós mesmos.

Um novo livro chamado “A sociedade dos ecrãs”, coordenado pelo sociólogo Gustavo Cardoso à frente de uma equipa multidisciplinar, problematiza com alguma novidade as consequências das novas tecnologias na nossa vida, da economia à política, da cultura à sociabilidade. Tive a sorte de estar no lançamento, com José Magalhães e José Pacheco Pereira, e de voltar a alguns temas que me interessam como cidadão, e tenho impressão que sobretudo como historiador.

Desde a Antiguidade que há tecno-otimistas e tecno-pessimistas. Mesmo nas tecnologias que nos parecem mais admiráveis. Sócrates (o antigo) criticou a invenção da escrita: dizia ele que era possível desmentir um mentiroso que fala, mas nenhum interrogatório conseguirá mudar um escrito mentiroso, pois o texto que lá está, lá fica (“onde entra lixo só sai lixo”). Ou melhor, “dizia” Sócrates, porque, fiel aos seus princípios, ele não escreveu nada. Quem escreveu e pôs as palavras na sua boca foi Platão, o que leva à questão: e se a transcrição foi mentirosa? Nem um Sócrates moderno, não forçosamente desse nome, conseguiria desmentir um escrito de Platão.

Mais tarde, os rabinos e outros eruditos judaicos criticaram os cristãos por usarem livros em códice (ou seja, com cadernos de folhas coladas e uma lombada, como os nossos livros modernos) em vez de usarem livros em rolo. A razão da crítica era que os padres da nova igreja podiam comparar facilmente o que se passava no primeiro e no último livro da Torá, pois bastava saltar de uma página para a outra, coisa que era muito difícil num rolo, por ser necessário enrolar e desenrolar de novo. Os sábios da religião antiga eram por isso submetidos a exercícios de memorização que os adeptos da nova religião poderiam evitar, e por isso os primeiros criticavam os segundos em termos semelhantes ao que usam as pessoas que fazem cálculos de cabeça (ou no papel) em relação às que recorrem à calculadora no telemóvel.

Dando um salto para a contemporaneidade, há também duas maneiras (caricaturando) de olhar para esta sociedade dos ecrãs. Uma, fiel à etimologia francesa, dirá que o “écran” é uma tela, um véu, ou um filtro, uma coisa que nos tapa a vista, nós impede de olhar os outros, e nos fecha num mundo artificial. Outra visão é a que apresenta o ecrã como uma “janela para o mundo”, uma abertura através da qual podemos ver realidades próximas ou longínquas. E à medida que os ecrãs não servem só para olhar mas para tocar (esta crónica foi escrita no ecrã de um telemóvel) eles transformam-se noutras coisas ainda (será que o leitor está agora por detrás de uma folha de papel ou de um retângulo de vidro?).

O que não muda contudo, é o velho debate sobre se a tecnologia nos faz melhores ou piores. Por mais voltas que dê, esse debate corre o risco de ignorar uma coisa: o que deve em primeiro lugar fazer-nos melhores (esperemos) ou piores é uma coisa muito simples: nós mesmos.

É uma conclusão pouco sofisticada, sei bem. Mas se nós formos tela um para os outros, assim usaremos a tecnologia. Só se formos janela uns para os outros, a tecnologia nos dará acesso, não só aos dados, não só à informação, mas a algum conhecimento e, vá lá, a um bocadinho de sabedoria.

(Crónica publicada no jornal Público em 27 de Novembro de 2013)

4 thoughts to “Tela ou janela?

  • Armando Costa

    Com muita sabedoria se faz uma análise simples e clara de uma questão que pode parecer tão complexa. Assim como o efeito das mudanças tecnológicas no modo como encaramos a mensagem do homem, também o efeito da tecnologia sobre os processos produtivos (o trabalho) merece uma reflexão semelhante, porque não deve ser “bode espiatório” (a tecnologia) do retrocesso civilizacional que parece estar a causar à humanidade.

  • silva

    É muito estranho o comportamento da sociedade politica e sindical incentivar os trabalhadores no caso do estaleiro naval de Viana do Castelo, para uma luta inglória.
    Digo isto porque até hoje no despedimento coletivo do Casino Estoril, com milhões de lucro, considerado um processo urgente em tribunal, ninguém faz nada para ajudar os trabalhadores.
    3 providências cautelares que não deram em nada.
    12 meses para notificar 12 pessoas.
    8 meses para o perito dar um parecer ao tribunal.
    Substitui-se o juiz.
    Neste caso para que serve o advogado?
    Perante esta evidência, aonde está a classe politica, os sindicatos para onde parte do nosso salário foi descontado com a promessa de uma defesa justa.
    Nada em 4 anos com o processo a arrastar em tribunal, temos a nosso favor nem direitos, ou justiça e o mesmo vai acontecer aos trabalhadores dos estaleiros de Viana do Castelo.
    Já não acredito em nada… tenho muita pena que os trabalhadores de Viana venham a passar pela mesma situação que eu de uma revolta pela podridão do País.

  • mm

    Independentemente da enorme utilidade da tecnologia, n podemos ser ingénuos qt à possibilidade nefasta e nefanda q ela comporta, no seu(ab)uso!
    E sabedoria, como a entendo, n virá dela. Qt mt, cohecimento e saber (q nem sempre produzem a 1ª).

  • Manuel Gomes Alexandre

    Considero que o suporte mais consistente do atraso civilizacional da Direita politica portuguesa,reside na fragmentação, primariamente preconceituosa da Esquerda, dividida entre ortod umaoxia inviável,em termos culturais do presente e do futuro e uma heterodoxia que é o futuro, a que, lucidamente, apela Rui Tavares. A direita assenta na subversão dos conceitos indissociáveis de Economia e de Politica,como ciências sociais indissociáveis e fundamentais que são, em que se enraiza toda a atual,desde que surgiu o primeiro Estado esclavagista, a tragèdia sócio – económica e politica mundial. Pelo contrário, os alicerces da Esquerda são,precisamente,a aplicação desses conceitos, os quais pressupôem, sempre e necessariamente, a existência de uma comunidade humana. Assim, á Economia de uma comunidade nacional compete promover a satisfação das necessidades de todas as pessoas dessa comunidade, sem excluir quem quer que seja,bem como a obtenção dos meios adequados a essa satisfação, pelo trabalho solidariamente obrigatório de todas as pessoas capacitadas para esse efeito. Significa isso, que a Economia de qualquer comunidade é representativa de todos os direitos e de todas as obrigações de todas as pessoas dessa comunidade,na medida das necessidades e capacidades específicas de cada uma.É,precisamente,para assegurar esses direitos e essas obrigações individuais e sociais que se impôe a exigênciia da autoridade do poder politico e o seu exercicio adequado ás referidas finalidades da Economia,designamente uma constante situação de pleno emprego,bem como a maximização do aproveitamenton de todos os recursos humanos e materiais disponíveis.Para isso, compete ao poder politico motivar e apoiar,tanto quanto lhe for possivel,o espirito empreendedor, criativo e criador da iniciativa privada possivel,mas compete – lhe também, como responsável pelas finalidades da Economia, ser o agente económico,financeiro e social complementar das limitações da iniciativa privada.

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