O erro de percurso do político preocupa-me menos do que o pecado contra a liberdade de expressão. Vindo do primeiro-ministro, este pecado acaba por infectar toda a cadeia de comando e degradar a qualidade da democracia que temos.
Há coisa de um mês, o colunista do DN João Miguel Tavares escreveu uma crónica sobre a estratégia que José Sócrates utilizou para se referir ao Caso Freeport no Congresso do Partido Socialista. O título da crónica era “José Sócrates — o Cristo da Política Portuguesa” e a sua frase de abertura, que tem sido muito citada, era a seguinte: “Ver José Sócrates apelar à moral na política é tão convincente quanto a defesa da monogamia por parte de Cicciolina”. Sabe-se hoje que José Sócrates processou João Miguel Tavares por causa desta crónica. Há também informações de processos judiciais contra jornalistas do Público, mas vou ater-me aqui apenas a este caso.
Em breves palavras terei de começar por dizer o que desejo para o caso Freeport. Não é muito: desejo que o primeiro-ministro do meu país esteja inocente, desejo que a investigação judicial vá até ao fim mesmo que o primeiro desejo não se cumpra, desejo sobretudo que a imprensa se pronuncie livremente sobre o assunto mesmo que os outros dois desejos não se cumpram.
O que acho reprovável é a inconstância e a parcialidade na utilização do caso Freeport, nas quais o primeiro culpado tem sido o próprio José Sócrates. O primeiro-ministro não pode apenas querer falar do caso quando o contexto lhe é favorável, para se vitimizar perante os seus apoiantes, mas retaliar judicialmente contra um cronista a quem essa estratégia desagrada.
Ao processar João Miguel Tavares, o primeiro-ministro comete um erro táctico, um erro político, um erro pessoal e — acima de tudo — um erro moral.
Um erro táctico, porque a matéria é subjectiva e indecidível em tribunal. O que João Miguel Tavares acha, com razão ou sem ela, é que José Sócrates não tem credibilidade quando fala de certos assuntos. Não é um tribunal que pode decidir que João Miguel Tavares passe a admitir credibilidade onde não a vê, ou que não escreva sobre isso. E é francamente disparatado um primeiro-ministro discutir a sua credibilidade com um cronista através dos tribunais.
Um erro político, porque o processo contra João Miguel Tavares confirma — ainda antes do tribunal — os defeitos que a crónica apontava ao primeiro-ministro. José Sócrates era acusado de só querer que se falasse do caso Freeport nos seus próprios termos; processando o cronista, José Sócrates reforça essa acusação.
Isto é um grave erro pessoal. No caso inicial todas as suspeitas são indirectas. Há, por exemplo, um tipo que diz que entregou dinheiro a Sócrates; nada prova que não tenha sido esse tipo a ficar com o dinheiro. No “caso sobre o caso” as suspeitas são de que há pressões para que se encerre o assunto. Agindo como agiu, José Sócrates contribui para que essas segundas suspeitas “colem”.
O que escrevi até aqui relaciona-se com o lado político do caso. Mas o aspecto moral é mais grave. O erro de percurso do político preocupa-me menos do que o pecado contra a liberdade de expressão. Vindo do primeiro-ministro, este pecado acaba por infectar toda a cadeia de comando e degradar a qualidade da democracia que temos. Há valores mais altos do que a ofensa que o primeiro-ministro possa sentir; um deles é o direito de não ter medo de ofender os poderosos.
É pois uma vitória amarga para o cronista que, ainda antes do processo começar, o primeiro-ministro tenha já confirmado o essencial da crónica. Seja como for, neste caso entre um Sócrates e um Tavares, eu não poderia deixar de estar do lado do Tavares. E não é por nepotismo: ele não é meu primo, nem filho do meu tio.
[do Público]
9 thoughts to “Tavares & Tavares”
Ofender é sempre uma coisa muito feia. Todas as pessoas deveriam ter medo de ofender, seja lá quem for o visado. Julgava o Rui Tavares mais civilizado. Vou ponderar melhor o meu voto.
Ó Megashira, mas quem é que ofendeu quem?
A mim parece-me que, a haver aqui ofensa, é do sr. José Sócrates contra o direito à liberdade de expressão.
Diz Rui Tavares : “Há valores mais altos do que a ofensa que o primeiro-ministro possa sentir; um deles é o direito de não ter medo de ofender os poderosos.”
Claro que há valores mais altos do que a ofensa que o primeiro-ministro possa sentir.Ninguém diz o contrário. Mas, entre esses valores, não está seguramente o direito de não ter medo de ofender. Aliás, ofender nem sequer é um direito. É, isso sim, uma falta de respeito.
Não vale sequer a pena discutir com quem acha que existe o direito de não ter medo de ofender os poderosos. Já reparou que se for eleito será certamente mais poderoso do que eu. Tenho o direito de não ter medo de o ofender? Não. Descanse, que não me sinto nesse direito. Mesmo que venha a ser suspeito de algum crime. Esta é a diferença entre nós. Uma pessoa que se arroga este direito não pode senão merecer o desprezo dos outros.
Por alguma razão aparece ligado ao BE. As raizes ideológicas desse partido podem ser disfarçadas, mas estão lá. E, se não o soubessemos já, ficamos a saber que se algum esse partido viesse a governar quem estaria na lista dos “poderosos” a não ter medo de insultar. Podemos mudar o embrulho mas que está lá dentro é o mesmo.
Quando li a “crónica da Cicciolina” fiquei com uma coisa enrolada no estômago, uma náusea profunda. Imaginei um filho meu a ler algo assim sobre mim. E achei inaceitável. Não me considero mais sério do que Sócrates nem do que João Miguel Tavares nem do que Rui Tavares. Acho que os dois últimos escrevem bem e o primeiro é um esforçado político, porventura, mais crente no voluntarismo do que devia.
Não me proponho discutir qualquer dos assuntos que envolvem o nome de Sócrates.
Queria, apenas, que pensasse na humilhação, no sentimento de impotência com que se fica perante um ataque daquele nível, sobretudo perante os que nos são queridos.
Tenho um amigo a quem, no célebre processo da UGT, o ministério público, 18 anos depois de o ter acusado, pediu, formalmente, a sua absolvição no processo porque não havia nada, mesmo nada, que o pudesse condenar. Mas vi, anos seguidos, a impotência com que ele lia as parangonas do Independente, o ar desconfiado com que alguns o olhavam, a progressiva descrença com que ele foi encarando a justiça. Dezoito anos depois, os projectos para o futuro já não existiam mas o director do Independente não foi responsabilizado pelo mal que lhe fez. Em nome de quê? Da liberdade de expressão? Acho que não. Acho que tudo foi uma questão política em que alguns têm o poder na ponta dos dedos e outros não.
No jornalismo não deve valer tudo. Ainda que a sua crónica seja irrepreensível do ponto de vista da lógica política, ela deixa de fora o direito de todos à dignidade pessoal, mesmo de José Sócrates.
Peço que me desculpe porque não tenho de lhe dar lições de nada.
aquilo que o a. torres escreve, é, no minimo, o que muita gente deveria atentar. meu caro, os meus parabéns! conseguiu captar a coisa de forma estraordinária. não está em causa o homem ou o lugar que ocupa, está em causa, uma certa narrativa. e, depois, que parvoice é essa, de que o socrates, ou outro quelquer, não se poder defender perante algo que considera calúnia?
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