Fantástico não era desembarcarem extraterrestres como nos outros livros de Ray Bradbury. Era ser rapaz e ler livros em que desembarcassem extraterrestres.
Era no tempo dos telefones fixos e havia um coronel aposentado que ligava para um velho amigo na Cidade do México. Abre a janela e espeta o telefone do lado de fora, dizia ele; eu quero escutar os barulhos que sobem da praça do Zócalo, e as vendedoras apregoando mamão e polpa de cacto, e os índios dos 400 povos fazendo confusão aí embaixo.
Isto era em A Cidade Fantástica, de Ray Bradbury, já mais de metade do livro andado. Eu tinha chegado até ali desconfiado. Mas então não passa disto? Numa coleção de ficção científica? Quando é que desembarcam os extraterrestres?
Não apareciam monstros. Havia um rapaz a quem tinham dado ténis novos e que brigava com o irmão por desfastio. À noite eram levados pelos avós a comer sorvetes. Na rua do lado morava o coronel velho com saudades do México. O rapaz levantava-se de madrugada, ia para o sótão, e cheio de amor pela sua cidade, fingia comandar as luzes que se acendiam uma a uma.
O “fantástico” do título enganava (só em português; em inglês o livro chama-se Dandelion Wine — Vinho de Dente-de-Leão); no fundo, acho que Bradbury escreveu aquele livro para nos ensinar uma ou duas coisas sobre o mágico e o maravilhoso. Fantástico não era desembarcarem extraterrestres como nos outros livros de Ray Bradbury. Era ser rapaz (ou ter sido rapaz) e ler livros em que desembarcassem extraterrestres.
Repito a história de Eduardo Prado Coelho, que escreveu nesta página muitos anos, e que se queixava de lhe ligarem sempre para comentar a morte de mais um escritor. O que eu queria mesmo, sugeria ele, era que me ligassem uma vez que fosse para noticiar o nascimento de um escritor, hoje de madrugada na maternidade, e me pedissem para comentar a obra futura dele.
Ainda não tenho uma notícia dessas para vos dar. Mas acho que posso reclamar o segundo prémio: Ray Bradbury não morreu.
Há pelo menos cinco anos que eu estava convencido do contrário. E de repente, vejo numa livraria um número da The Paris Review com uma entrevista a Ray Bradbury. Póstuma, certamente, pensei eu. E quando vou confirmar, era póstuma uma ova. O homem está vivo. Enviuvou, teve um enfarte, fez agora noventa anos, mas está vivo. Quando perdeu a capacidade de datilografar resolveu telefonar à filha e ditar-lhe um livro. Saiu um policial, chamado Vamos Todos Matar a Constança. Vamos todos reler este título.
Na entrevista, Ray Bradbury fala sobre não ter tido educação formal, e recorda: “Sou um produto das bibliotecas. Nunca fui à universidade. Mas fui para a biblioteca e descobri-me. Depois de acabar o liceu, fui para a biblioteca três vezes por semana, durante dez anos, até à altura em que me casei. Aí achei que tinha feito o meu trabalho. Licenciei-me da biblioteca com 27 anos.”
Isto eu li anteontem. E ontem compro o DN e leio que Ray Bradbury disse umas coisas sobre Barack Obama, protestando, dizendo que os EUA precisavam de uma revolução (não dessas, mas das outras, ao que parece). Logo ele, o velhaco, que esteve tão caladinho durante os anos do George W. Bush que eu até achei que ele tinha morrido.
Mas eu perdoo-lhe tudo. Ray Bradbury esteve vivo dois dias seguidos, e continua. Ena pá ena pá ena pá, agora se lhe dessem o Nobel é que era.
3 thoughts to “Ray Bradbury não morreu”
Caro Rui Tavares
Muito obrigado pela notícia de que o Ray Bradbury não morreu.
Especial obrigado pela viagem na leitura de um dos mais fabulosos escritores da nossa (?) geração.
Um pedido: Em que revista leu a entrevista do RB.
Grato pela sua resposta.
Cordiais saudações
Adelino Cruz
Caro Adelino Cruz,
foi num número da The Paris Review que pode ser encontrado na Fnac do Colombo.
Com meus melhores cumprimentos,
Rui Tavares
concordo. Bradbury não morreu! apenas cumpri sua missão, deixou-nos mensagens, licões e esperancas. Bradbury morre como um dos tantos personagens seu, ou seja, não morreram, estão vivos cada vez que abrimos um livro dele.