O que a França está a fazer é ilegal, uma clara violação dos tratados e do espírito fundamental da União Europeia. A Comissão Europeia, que é suposta ser a “guardiã dos tratados”, não se insurge. Durão Barroso está silencioso.
Sabem o que eu gostaria de ser? Um colunista de direita.
Se eu fosse um colunista de direita poderia comparar a minha ida ao Algarve para férias, — de avião, e em primeira classe — com o avanço do exército nazi pela Europa fora (o leitor que achar isto impossível faça o favor de ler a crónica de Vasco Pulido Valente de ontem).
Sendo um cronista de esquerda, não posso sequer comparar o salazarismo com o fascismo. Porém, se fosse um cronista de direita poderia defender que o salazarismo foi o primeiro construtor do estado social, um grande escolarizador e, se tivéssemos dado uma chance (mais outra) ao marcelismo, uma quase democracia civilizada. (O leitor que achar isto impossível faça o favor de ler o ensaio de Rui Ramos sobre Salazar no “Atual” do Expresso).
Sendo um cronista de esquerda, não tenho estas liberdades: devo até justificar-me por tudo e um par de botas, do PREC ao Guterrismo. Ora, se eu fosse um colunista de direita, teria o problema correspondente resolvido. Poderia simplesmente declarar que não existe nenhum partido de direita em Portugal, que o PSD e o CDS são na verdade socialistas, e que nenhum deles é digno das minhas extraordinárias ideias. (O leitor que achar isto impossível leia qualquer crónica de Henrique Raposo no Expresso).
Sabem o que eu não queria? Chatear-vos nas vossas férias, reais ou simplesmente imaginadas. Mas cá vai disto.
Em Portugal, que é a nossa província, um membro do governo que é Secretário de Estado da Segurança Social anuncia uma poupança de dez milhões nos Rendimentos Sociais de Inserção, afetando em período de crise 44% dos beneficiários desta prestação, que estão entre as pessoas mais vulneráveis do país. “Compromisso cumprido”, afirmou o Secretário.
O mesmo governo promete pensar em começar a estudar formas de baixar os custos com a renovação do seu parque automóvel, que são de 7,5 milhões de euros anuais. Isto é capaz de ser coisa mais demorada.
Na Europa, que é o nosso mundo, o governo francês continua com a sua política de repatriação de ciganos romenos. A imprensa ajuda sendo eufemística — ninguém usa a expressão “limpeza étnica” — ou incorreta — aqui ou ali vai aparecendo a expressão “imigrantes ilegais”.
Vamos ser rigorosos sobre o que isto é e o que não é. Não, não se trata de imigrantes ilegais: os cidadãos romenos são comunitários e têm direito à livre circulação pelo território da União. E, sim, isto é uma limpeza étnica, ou seja, uma expulsão de um dado território de uma população circunscrita por critérios étnicos.
Como seria de esperar, a Itália de Berlusconi já manifestou vontade de seguir o exemplo francês. Quando a Croácia entrar na União Europeia, até 2012, ouviremos discursos sobre o caminho que ela fez desde as limpezas étnicas dos anos 90. Da maneira que as coisas estão, parece-me que é antes a UE que vai aderir à Croácia dos anos 90.
O que a França está a fazer é ilegal, uma clara violação dos tratados e do espírito fundamental da União Europeia. A Comissão Europeia, que é suposta ser a “guardiã dos tratados”, não se insurge. Durão Barroso está silencioso. Dá-se tempo a que Sarkozy faça o seu número para as sondagens.
Bom regresso de férias. Reabriu a época da pancada no pequeno. Na verdade, acho que nunca chegou a fechar.
5 thoughts to “Pancada no pequeno”
Pois… E por que é que o “Público” – que “nós” persistimos em comprar desde o seu aparecimento há 20 anos – considera relevantes para os seus leitores os exercícios de auto-contemplatividade narcísica de VPV? E onde está a Esther Muczink quando precisamos dela para se insurgir contra esta umbiguista menorização do nazismo e não para dar os Parabéns ao MEC?
Quanto ao mais, seria bom que não vendêssemos “gato por lebre” aos cidadãos da UE… A “liberdade de fixação de residência” continua lamentavelmente sujeita à condição de o migrante intra-UE não constituir um encargo para o sistema de segurança social do estado de acolhimento…
Quanto às expulsões – é o que são, para quê, com efeito, empregar eufemismos? – da comunidade cigana de França, não sei por que ainda nos espantamos… De Sarkozy, esse expoente da “racaille” política europeia, não me parece que se pudesse esperar melhor…
Sic transit gloria mundi… (Assim vão as glórias do mundo, mas sobretudo, as suas misérias!…)
Caro Rui Tavares,
Partilho a seu repúdio da política francesa, com as suas claras conotações racistas, nomeadamente a ideia de condenar uma etnia colectivamente.
Mas o seu artigo não é inteiramente rigoroso. As expulsões de ciganos em França não são ilegais. O princípio da livre circulação na UE não é absoluto. As pessoas podem circular se tiverem trabalho, se forem estudantes ou então se forem prósperas e provarem que não representam um ‘encargo’ para o pais onde residem. Aliás se estas expulsões fossem ilegais, seriam fáceis de travar por uma das várias ONG que militam pelos direitos humanos em França.
Parabéns pelo ‘blogue’.
Estamos a olhar para longe daqui, uma vez mais.
Em Portugal as nossas polícias acompanham famílias de portugueses ciganos, a quem convenientemente colam o rótulo de nómadas, aos limites territoriais dos “seus” municípios e não as deixam voltar a entrar (até que estas regressem, meses mais tarde), ainda que, em muitos casos, essas pessoas tenham naturalidade do concelho em questão. Nos casos mais gravosos, tais famílias são surpreendidas pela madrugada por equipas de intervenção (das nossas polícias), armadas até aos dentes e que não hesitam em dar umas cacetadas se os surpreendidos, com as crianças aterrorizadas, reagem.
Sendo eu antropólogo, tendo acompanhado várias destas famílias, sobretudo pelo Alentenjo, Ribatejo mas também em Espanha, diria que os direitos humanos dos portugueses que são ciganos são violados, aqui em Portugal, todos os dias. A administração central sabe-o – em 2008 e 2009 houve uma audição a nível parlamentar liderada por Maria do Rosário Carneiro na qual foram relatados casos na primeira pessoa – alguns autarcas estão a par (pelo menos), os partidos sabem-no, os cientistas sociais sabem-no, as associações sabem-no e os media também.
O problema é que são gerações atrás de gerações que sofrem este tipo de perseguições, são agredidas, os seus bens (escassos) ciclicamente arrestados pelas polícias, as suas entradas nas localidades denunciadas pelos cidadãos que os avistam, as crianças saem da escola cedo, quando lá cheagam… podia continuar a dar exemplos, mas penso que não é necessário.
Violação de direitos humanos ou crime de Estado? E os advogados, onde estão? Porque não pegam nesta “pasta”?
Abraços
André Correia
Não quis com o meu comentário anterior atacar o post original. Apenas queria frisar que em nossa casa o panorama é muito mau. Lembram-se das milícias de Vila Verde ou Oleiros, na década de 90? O que está hoje a acontecer em França (e que aconteceu há aproximadamente 2 anos em Itália, com as “casas”/barracas dos ciganos, italianos e romenos, a serem incendiadas por milícias civis) é sem dúvida uma violação de direitos humanos básicos, dos tratados, incluindo o “de Lisboa”. E tem nome: ciganofobia. Em Portugal o caso é grave, há muito tempo, embora estejamos longe do patamar que a Hungria atingiu, país no qual famílias ciganas foram caçadas e abatidas a tiro, nos últimos dois anos. Esta prática era registada pelos folcloristas dos fins do séc. XIX nas florestas da Áustria, por exemplo. Nunca se sabe qual será o desfecho, depois de algo ter início.
“Não, não se trata de imigrantes ilegais: os cidadãos romenos são comunitários e têm direito à livre circulação pelo território da União.” <- São legais durante 3 meses, período após o qual precisam de um visto.