Estou neste momento em trânsito e sem grandes hipóteses de dar uma resposta decente a este artigo de Pedro Magalhães (também aqui), a propósito da revisita que faço hoje a um documento da SEDES (de Julho passado) em que se escrevia sobre a “sombra das eleições”. O Pedro Magalhães não gostou da minha interpretação e, sob tíltulo de “Dissonância Cognitiva”, escreve assim:

«Vem isto a propósito de um artigo de Rui Tavares hoje no Público (e dentro de dias, aqui). Nele, criticando a “falta de coragem democrática” com um dos principais problemas políticos de Portugal, recorre a um artigo que tinha escrito há meses sobre uma tomada de posição da SEDES, que Rui Tavares interpretou (e interpreta) como fazendo parte de uma “funesta tradição de gente que desconfia das eleições [ou da democracia]).”

É muito curiosa esta leitura. A tomada de posição da SEDES, para aqueles que se recordam, analisava três áreas da governação: legislação laboral, saúde e educação. Depois de documentar várias medidas em cada uma dessas áreas que os signatários achavam dignas de aplauso, o documento mencionava sinais recentes e concretos de que o governo se preparava para mudar de políticas nalgumas dessas áreas para direcções mais incertas, e relacionava essa inflexão com a aproximação das eleições. E criticava essa inflexão, sugerindo inclusivamente que, ao contrário da interpretação habitual, a popularidade do governo poderia sofrer mais com essa inflexão do que com o caminho já percorrido: “exactamente no momento em que o Governo inicia uma aparente suspensão do processo das reformas, a opinião pública parece voltar-se contra ele. Coincidência ou causalidade, nunca saberemos, mas os sacrifícios feitos por todos não podem, nem devem, ser desperdiçados.”

A leitura feita por Rui Tavares e muitos outros nessa altura – e, pelos vistos, ainda hoje – foi a de que tudo isto exprimia desconfiança em relação aos eleitores e à democracia. Mas foram raros os que fizeram a leitura que, à luz do que o documento realmente diz, seria a mais correcta: precisamente a leitura oposta.»

Qual é a “leitura mais correcta” de um texto colectivo? Bem, os textos ainda têm uma hierarquia e aquilo que é mais importante neles é enfatizado pela localização dos argumentos e pelo ênfase que se lhes dá. Um texto que, na primeira coisa que diz, teme pelas consequências “visíveis” da “aproximação das eleições” dirige-se num certo sentido. Se a seguir diz que o governo faz “reformas que exigiram coragem política” nos primeiros anos e “dá agora sinais de preocupação com o calendário eleitoral em detrimento da administração do País”, dirige-se ainda mais nesse sentido, o de que as eleições e as reformas são antagónicas. Na altura escrevi que não se entendia se a SEDES estava disposta a levar este raciocínio até às últimas consequências, e que não parecia estar, porque o próprio pensamento da SEDES era deficiente de forma em relação a este assunto. Infelizmente, parecia ser uma extensão desse lugar comum de que as reformas são importantíssimas e a eleições atrapalham as reformas, o que não quer dizer (e repeti-o duas vezes) que chegue a ser um pensamento anti-democrático (e insisti “pelo contrário”) quer apenas dizer que é um pensamento pouco sofisticado sobre a democracia.

O Pedro Magalhães vem agora chamar a atenção para um outro excerto do documento, que aparece numa fase de preparação para o remate, como uma espécie de aparte. Como veremos, é condicional e deliberadamente inconclusivo:

«Não deixa de ser verdade que exactamente no momento em que o Governo
inicia uma aparente suspensão do processo das reformas, a opinião pública
parece voltar-se contra ele. Coincidência ou causalidade, nunca saberemos,
mas os sacrifícios feitos por todos não podem, nem devem, ser
desperdiçados.»

É também um excerto caracteristicamente inteligente: traz a marca de Pedro Magalhães, que foi um dos signatários do documento. Por isso me dirijo agora a ti, caro Pedro.

Pedro: vais desculpar-me, mas um excerto discreto no texto, que começa por um “não deixa de ser verdade”, hesita numa “aparente suspensão” e chega a um “nunca saberemos”, para terminar num momento de wishful thinking não é, não chega a ser, não tem direito a que agora o venhas a erigir em “leitura correcta do documento”.

Podes dizer que esse excerto tenta (talvez, nunca viremos a saber, aparentemente) moderar o democepticismo do resto. É verdade, e aqui vem a parte mais interessante.

A frase que citas como a leitura mais correcta é na verdade apenas um qualificativo do parágrafo anterior, que é o que abre a conclusão e usa a célebre expressão “a sombra das eleições”. Confirma-se na conclusão que a direcção que o texto trazia desde a primeira frase: a de que as eleições atrapalham as reformas. O texto começa por esta noção, reafirma-a na conclusão com uma metáfora intragável para quem tenha o mínimo de respeito pelo voto e pelas eleições (concordarás comigo?), e depois houve quem tentasse moderá-la com o desejo (se bem entendo) de que talvez a perda de popularidade se deva a moderação das reformas (mas enfim, nunca saberemos). É uma ideia interessante, mas a que o próprio documento nunca fez justiça nem deu força.

Infelizmente para nós, o democepticismo de base nunca foi moderado por Campos e Cunha ou pela própria SEDES quando o documento foi emitido. O meu artigo em que comento o documento da SEDES extensamente (repostarei aqui mais tarde) é de Julho e nessa altura nem tu, nem Campos e Cunha, nem ninguém, se deu ao trabalho de repescar uma discreta e bem intencionada mas dubitativa frase para explicar que o documento não punha a sombra das eleições no inferno (talvez, nunca saberemos, no purgatório). Eu compreendo que quisesses que o documento da SEDES tivesse sido lido de outra forma. Seis meses depois não é demasiado tarde para tentar. Mas a SEDES não o escreveu de outra forma e nunca o contextualizou de outra forma (apenas tu agora o fizeste, num texto que revela mais de desejo do que interpretação fria do texto).

Campos e Cunha participou em pelo menos um debate na altura, no qual a leitura não passou da trivialidade de base de que as eleições atrapalham as reformas. E talvez atrapalhem, imagino. Mas o que eu gostaria é que a SEDES, talvez ajudada por gente como tu, deixasse de ver as eleições como uma sombra sobre as reformas e mais como uma luz sobre as reformas. O problema é que, pelos vistos, a maioria da SEDES não vê assim: e quem tem as sombras na cabeça escreve-as logo na primeira linha. Quem vê as eleições como uma luz nunca escreve que elas são uma sombra, porque isso não lhe passa pela cabeça. E querer que tivesse sido ao contrário é também um exercício não de psicologia social mas individual, embora perdoável: reconstrução de memória.

3 thoughts to “Outlier: reconstrução de memória

  • Luísa S.

    Gostei do artigo, Rui e das críticas ao VPV e JPC. Aliás ainda estou para saber como é que o Pereira Coutinho escreve na Folha de São Paulo e é doutorado em Ciência Política – mas estará tudo doido? Esclarece-nos Rui.

  • João Cerqueira

    Do artigo de Rui Tavares constato que de uma só penada desanca os principais colunistas da direita lusa. Forte e feio!
    Pulido Valente, que é equiparado a Herman José (qual dos dois se terá sentido mais ofendido?), certamente não lhe responderá. Porém, dos demais visados é de esperar o correspondente contra-ataque . Feio e forte!
    Estando mais próximo das posições de Tavares do que das dos mencionados pensadores (todos eles com provas intelectuais dadas), a maioria dos quais tolerou a Guerra do Iraque e apoiou o ex-presidente Bush _ o homem que mais danos causou à América e aos valores ocidentais de liberdade e democracia _ posição tão absurda e contrária aos valores liberais que apenas a posso conceber como uma reacção natural contra os esquerdistas, tal como estes, sob o peso da concomitante canga ideológica, parecem naturalmente desconfiar da autoridade, da polícia e dos tribunais, tudo metido no mesmo saco e equiparado a autoritarismo, ou até fascismo, concordo sem esforço existir falta de coragem democrática em Portugal.
    Porém, puxando agora a brasa para a minha sardinha (pois já dei aulas num liceu e espero voltar a dá-las noutros locais menos violentos e aonde se façam exames), e aproveitando a onda de contestação às reformas educativas, gostaria que tal coragem política fosse aplicada numa grande reforma democrática do sistema de ensino, o qual, segundo todos os rankings internacionais é de qualidade baixa, ou fraco. E, na minha modesta opinião, a principal reforma a fazer_ existindo decerto outras muito importantes_ é a de criar condições mínimas dentro da sala de aula para qualquer professor poder ensinar, tarefa que nenhum ser humano conseguirá levar a cabo se tiver de interromper a aula a cada dois minutos (ou menos), ser insultado, ameaçado e até agredido (quer pelos alunos, quer pelos seus progenitores ou familiares). Algo semelhante acontece às vezes nas discussões televisivas sobre futebol, quando todos começam a berrar uns com os outros_ a bandalheira instala-se e nada de instrutivo brota de semelhantes cenas tristes.
    Pois na maioria das escolas portuguesas o cenário é idêntico, radicando aqui a principal causa do insucesso escolar, dos alunos chegarem às universidades sem saberem escrever uma frase ou entender um texto (às vezes nem sequer se conseguem expressar com lógica) e de na televisão os pais de alunos vindos de outros sistemas de ensino onde a balbúrdia não é tolerada, há castigos reais para quem prevarica, e quem não estuda reprova mesmo, dizerem, condescendentes, que «a escola portuguesa é uma brincadeira».
    E neste assunto tão vital para o desenvolvimento de Portugal quem tem razão são os supraditos colunistas da direita, ainda que possam ter uma visão elitista do ensino, pois o estado de desrespeito pelos professores_ bem patente nas cartas que estes endereçam para os jornais_ é directamente proporcional à ignorância com que os alunos saem da escola. Quanto à esquerda, por regra, prefere desvalorizar a importância da autoridade e insistir em métodos pedagógicos susceptíveis de resolver todos os problemas de indisciplina, educar aqueles que nas suas casas insultam e batem na própria mãe. Ante propostas tão vagas e tão pouco fundamentadas, apetece então perguntar: será que alguma vez consultaram a bibliografia sobre o assunto? Sabem por acaso o que é o Time-out ou em que consistiu a experiência de Summerhill?
    E o que será destes jovens malcriados e ignorantes quando enfrentarem as leis do mercado e os regulamentos das empresas? Rua, é claro. Quem depois lhes valerá? Quem, afinal, tentou defendê-los?
    Urge sim coragem democrática e as respectivas reformas caro Rui Tavares, começando por tornar a escola portuguesa um local onde se possa realmente aprender, no qual todos tenham as mesmas oportunidades e se respeitem_ palavra mágica, Respeito. O problema é que mesmo em democracia há regras e castigos, práticas indispensáveis para a construção de qualquer bom sistema de ensino ou, indo mais longe, de um país próspero e decente. E quando democraticamente os alunos violentos ou malcriados começassem a ser punidos (por exemplo com serviços cívicos na própria escola), ia cair o Carmo e a Trindade. Certa esquerda não iria tolerar esse regresso ao «fascismo».
    Porém, não existe outra solução (que haja sido testada).
    Quem terá coragem democrática para o fazer?

    João Cerqueira

  • Ant.º das Neves Castanho

    Saliento apenas a curiosa coincidência entre os seis meses decorridos sobre a primeira interpretação do documento da SEDES e os seis meses propugnados por Manuela Ferreira Leite para “arrumar a casa” sem o empecilho da Democracia – uma maçada! – e, consequentemente, das Eleições.

    Proponho ainda uma moratória equivalente para o funcionamento do próprio Estado de Direito, nem são precisos seis meses (pessoalmente apenas preciso de alguns dias) para todos nós regularmos os nossos assuntos pessoais mais delicados até ao feliz regresso triunfante, de novo, do Estado de Direito Intermitente.

    A DEMOCRACIA INTERMITENTE: o primeiro grande conceito político verdadeiramente REVOLUCIONÁRIO dos alvores do Terceiro Milénio? E logo, por sorte, viu a luz no nosso Portugalzinho, esquecido do Progresso (material e intelectual)?…

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