|Do arquivo Público 22.01.2018| Como funciona um parlamento? Em qualquer café do país a resposta virá pronta: num parlamento tomam-se decisões através do voto. O lado de qualquer questão que tiver mais deputados ganha. Certo? Em praticamente todos os lugares do mundo, sim. Em Portugal, não.

Aqui vai outra pergunta. Qual é o número maior, 99 ou 98? Em qualquer lugar do mundo, incluindo Portugal quase inteiro, 99 é o número maior. No plenário da Assembleia da República Portuguesa, contudo, 98 é maior do que 99.

Confuso? Pois explica-se muito facilmente.

A história foi descoberta pelo site independente hemiciclo.pt e divulgada pelo DN de ontem.

No passado dia 29 de novembro votou-se na Assembleia da República uma proposta do PAN sobre “o regime jurídico aplicável aos bombeiros portugueses”. Noventa e nove deputados votaram a favor. Noventa e oito deputados, contra. Dezassete abstiveram-se. Ora, como 99 é mais do que 98, a proposta foi aprovada, certo? Errado. O que a mesa da Assembleia da República contabiliza, interpretando o regimento parlamentar com a extraordinária anuência de todos os partidos (desde 2001), é também o voto dos deputados que não votaram. Ora, somando todos os deputados de todos os grupos parlamentares, quer estes tivessem ou não votado, quer eles estivessem nas instalações da AR ou a jardinar no quintal das traseiras de sua casa, o que a mesa contabilizou naquele dia foi (acrescentando o voto dos deputados que não votaram ao voto do seu grupo parlamentar) um resultado com 107 votos contra e 106 votos a favor. Ou seja, criaram-se do nada quinze votos de deputados que não estavam presentes e não votaram. Com essa matemática especial que existe só em São Bento, a proposta foi rejeitada.

Como pode isto ser? Nós, que somos meros mortais, não percebemos. Já os nossos deputados na AR são corpos evanescentes, capazes de serem contados numa sala onde não estão presentes e de nela votarem sem ter votado. Fantasmas, portanto. Os seus partidos são como médiuns numa sessão espírita, capazes de convocar quem não está presente e interpretar para os circunstantes a vontade dos ausentes. E a mesa da Assembleia da República não é como a mesa de nenhum outro parlamento no mundo; é mais assim como uma mesa de pé-de-galo.

Antes que nos alarmemos, que fique claro que os partidos na AR estão — todos sem exceção — satisfeitos com esta situação. Na passada sexta-feira, repetiram a dose. O PCP apresentou uma resolução sobre a biomassa florestal que mereceu 94 votos a favor e 96 contra. Na matemática do mundo lá fora, teria sido rejeitada. Na matemática que vigora em São Bento, convocaram-se 21 espíritos de deputados ausentes e a resolução foi aprovada.

Em todos os parlamentos sérios do mundo, só há uma instância em que os grupos parlamentares são contabilizados incluindo os deputados ausentes: trata-se da conferência de líderes. Na sessão plenária, a regra sagrada é contarem os deputados que se deram ao trabalho de estar presentes e ir votar: assim se passa no Parlamento Europeu, no Congresso dos EUA, na Câmara dos Comuns e por aí afora. No caso português, quando o cartel partidário se substitui ao parlamentarismo, reescrevendo-lhe o regimento, há um nome para o que acontece: batota.

Ora, os partidos portugueses já usam e abusam da batota com a figura inconstitucional da disciplina de voto. Agora descobrimos que cultivam também esta figura extraordinária da invocação dos votos ausentes. Começo a achar que a única razão para não terem já substituído o parlamento por uma simples aplicação informática ligada a uns terminais instalados diretamente nas sedes dos partidos é porque lhes dá jeito terem as imagens dos seus políticos a trocarem dichotes para depois as poderem passar nos telejornais da noite.

(Crónica publicada no jornal Público em 22 de janeiro de 2018)

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