Os cobardes são aqueles que ficam paralisados pelo medo; os temerários aqueles para quem o medo não existe. E os corajosos aqueles que reconhecem o medo sem que isso os impeça de avançar.

Há dois géneros de pessoas: as que dividem o mundo em dois géneros de coisas e Aristóteles, que tinha hábito de dividi-lo em três.

Aristóteles, por exemplo, não dividia o mundo só em cobardes e corajosos, ou verdadeiros e mentirosos. Na sua Ética a Nicómaco, as categorias da coragem ou da verdade são sempre três. O corajoso, por exemplo, é apenas a categoria intermédia entre os cobardes e os temerários. O sincero, por sua vez, é apenas a categoria intermédia entre o modesto e o mentiroso.

Então é assim:

os cobardes são aqueles que ficam paralisados pelo medo; os temerários aqueles para quem o medo não existe. E os corajosos aqueles que reconhecem o medo sem que isso os impeça de avançar. Um general cobarde é derrotado por não conseguir mexer as suas tropas; um general temerário avança mesmo quando pode perder todos os seus soldados. Um general corajoso é capaz de recuos estratégicos ou de esperar por reforços.

A esta divisão-em-três Aristoteles acrescenta uma outra que continua a ser válida. É ela entre os “ironistas”, ou seja, aqueles que dizem de si sempre menos do que aquilo que são, os “fanfarrões” (a palavra grega é “aleizón”) ou aqueles que exageram sempre as suas próprias qualidades, e finalmente, aqueles que falam genuinamente ou com sinceridade (a palavra grega é algo como “parrésia”) e portanto se apresentam na sua real medida. Nesse caso, um temerário pode ser mesmo um temerário ou um cobarde insincero. E um corajoso, se for sincero, deve começar por admitir o seu próprio medo.

Em época de escolhas as pessoas tendem a ser binárias, e a ser submetidas a pressões para serem mais binárias ainda, no limite do maniqueísmo: estás conosco ou estás com eles, recusas ou aceitas, és amigo ou inimigo. Nestas fases, o adversário é aquele a que se negam todas as qualidades, o aliado aquele a quem se negam todos os defeitos.

Sabemos bem, contudo, que não pode ser assim. O maior desafio é manter as escolhas claras sem que elas se tornem um jogo de vitórias absolutas para derrotas absolutas. Nos jogos de futebol da minha aldeia, quando era miúdo, era sempre preciso cuidado para não humilhar a equipa adversária, evitando que o guarda-redes se zangasse e fosse embora. Nós éramos tão poucos que não dava para fazer três equipas. Era preciso vencer, convencer, mas garantir que no dia seguinte estávamos todos ali: precisávamos uns dos outros.

Se Aristoteles acordasse hoje não reconheceria a democracia ateniense na democracia contemporânea. No entanto, se algo sobreviveu foi isto: a necessidade de preservar o adversário, porque sem adversário não há política, e a necessidade de preservar distinções entre aliados, porque sem distinções não há parceria nem cooperação. Se entendermos isso, saberemos ver para lá dos cobardes e dos temerários, dos modestos e dos mentirosos, e encontrar em nós mesmos as fontes da coragem sincera.

Nota 1: na última crónica citei um texto de Wolfgang Münchau em inglês, no Financial Times, esquecendo-me de dizer que os leitores encontram o mesmo texto em português, no Diário de Notícias, com o título “O reino de fantasia das regras da zona euro”.
Nota 2: farei uma pausa de duas semanas a partir deste texto, regressando depois de 15 de agosto. Até breve!

(Crónica publicada no jornal Público em 29 de julho de 2015)

One thought to “O que faria Aristóteles?”

  • elisabete moreira

    quero receber o artigo “o que faria aristóteles”

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