Em geral, o que um humano consegue fazer, outro consegue fazer melhor, ou refazer diferente, ou desfazer para fazer de novo. A tradição que um humano cria, outro quebra. Da prisão que um humano concebe, outro descobre como escapar.
As coisas têm de ser assim, dizem-nos, porque têm de ser assim. Ouvimo-lo quando éramos crianças; quando somos adultos dizemo-lo nós. Antes não o percebíamos, e agora percebemos bem demais: o mundo está cheio de coisas sobre as quais não temos controlo.
Mas as coisas têm de ser assim, como? Inventamos teorias: teológicas ou políticas, de esquerda ou de direita. Tem de ser assim porque está escrito neste livro, A Bíblia, ou descrito naquele livro, O Capital. Há diferenças, claro, entre o fatalismo e o determinismo. Mas há também grandes semelhanças. Já repararam como há estirpes de pró-capitalismo e de anti-capitalismo que são praticamente iguais? Para uns o mercado tem sempre toda a razão, para outros o mercado tem sempre todo o poder. Para ambos, o mercado é impessoal, automático, indiferente e indivisível.
E assim chegamos à presente crise. Também dela se diz que tinha necessariamente de acontecer: porque o capitalismo foi contrariado, explicam aqueles, quando os estados se endividaram para satisfazer as populações; ou porque o capitalismo não foi contrariado, respondemos nós, quando os estados deixaram a finança à solta para satisfazer os seus donos. Em ambos os casos, a moral da história é que isto tinha necessariamente de acabar assim no mundo. E na Europa: era forçoso que o euro não funcionasse com culturas tão distintas, e portanto será também impossível fazer a União funcionar. E em Portugal: era inevitável que pagássemos pelos nossos erros, diz-se, mesmo que Wall Street, Atenas, Berlim e Bruxelas não existissem.
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O discurso da necessidade é pois, uma moral da história. Nós acreditamos porque somos viciados em morais da história. Mas atenção: uma moral da história não é a história.
A história é que tudo isto que existe e nos avassala — os estados e as bolsas de valores, os tribunais e os exércitos, as multinacionais e as federações, as moedas e os impostos — foi feito por gente como nós. Nem mais espertos, nem mais estúpidos, se tomados na sua generalidade.
E, em geral, o que um humano consegue fazer, outro consegue fazer melhor, ou refazer diferente, ou desfazer para fazer de novo. A tradição que um humano cria, outro quebra. Da prisão que um humano concebe, outro descobre como escapar.
Esta é uma ideia tão simples que podemos passar uma vida inteira sem lhe dar a devida importância.
Não peço agora que substituam o discurso da necessidade pelo discurso da imaginação. O primeiro é um vício, e portanto difícil de largar. O segundo é mais trabalhoso. Deve então começar-se a pouco e pouco: cinco minutos por dia.
Considere-se a simples pergunta: e se esta não fosse uma crise de necessidade, mas uma crise da imaginação? Os responsáveis são responsáveis por falta de imaginação. Em consequência, a falta de imaginação é irresponsável. É por falta de imaginação que certas consequências não foram previstas. Por falta de imaginação não conseguimos pôr-nos no lugar dos outros. E é talvez por falta de imaginação que não conseguimos encontrar a porta de saída.
Esta ideia não tem de ser verdade, não há qualquer necessidade disso. Não precisa sequer de acreditar nela. Dê-lhe somente cinco minutos de imaginação por dia. Ela não é outra moral da história. É outro começo de história.
(Crónica publicada no jornal Público em 3 de Dezembro de 2012)