A visão que a esquerda tem de si mesma e a que a direita tem de si mesma não se justapõem, elas discordam até nas suas discordâncias.

Um blogue de direita, o 31 da Armada, leu a minha última crónica, na qual escrevi que “mais do que uma doutrina ou uma ideologia, a esquerda é a aliança daqueles que não são ricos nem poderosos” e acusa-me de enveredar por uma “caricatura de contornos novecentistas” num texto assinado por João Vacas e ilustrado por uma caricatura de contornos oitocentistas.

Vamos começar por uma coisa simples e encontrável em qualquer enciclopédia. A palavra “novecentista” refere-se ao século XX, isto é, aos anos após 1900. A palavra que se refere ao século XIX, cujos anos começam por 1800, é “oitocentista” — e dá-me a forte impressão de que era essa que o nosso bloguer conservador quereria ter usado para me chamar.

Agora vamos complicar um bocadinho. A ideia que impressionou o 31 da Armada não é novecentista, nem oitocentista, mas setecentista, embora tardia — ou seja, de finais do século XVIII. É, com efeito, contra a sociedade de corte e por ordens que aparece a ideia da esquerda enquanto aliança dos “muitos”. As raízes profundas da oposição entre os “muitos” e os “poucos” estão na Antiguidade Clássica, em particular na Roma republicana dos Tribunos da Plebe (que excluía os escravos, tal como a democracia ateniense). É, sobretudo, uma auto-descrição: é a esquerda que se vê a si mesma — certa ou erradamente — como defendendo os interesses dos “muitos”, uma vez que os “ricos e poderosos” podem defender-se sozinhos.

Aquela crónica não era, está claro, um texto de teoria política, mas antes uma carta zangada à minha família política, sobretudo aos seus partidos e chefes, por alguém que sente pertencer-lhe até ao tutano. Enquanto a escrevia perguntei-me como seria ela lida por alguém de outra família, e por isso agradeço sinceramente a João Vacas a oportunidade de ver o assunto por outros olhos, mesmo quando há alguma injustiça em objeções como esta: “Está visto que quem é de direita é rico e poderoso. Eles são os bons e nós os maus. Simples, não é?”

Nada simples. Comecemos pelo bom e pelo mau: uma das primeiras fases da esquerda foi logo o Terror na França dos anos 1790, talvez um dos primeiros exemplos de totalitarismo. Ainda hoje perduram regimes autoritários e brutais de esquerda. Nenhuma questão é tão simples como uns serem bons e outros maus — nem sei se isso seria bom ou mau.

Dizer que a esquerda é a aliança dos “muitos” também não resume a direita aos “poucos”, simplesmente porque — à exceção da direitados interesses, oligárquica — a direita tende a não reconhecer essa distinção, falando antes do “Todo”, mas um todo que tradicionalmente era compartimentado ao estado ou à nação (exemplo: a União Nacional) ao passo que na esquerda a aliança dos “muitos” transcendia fronteiras (A Internacional; “Proletários de todos os países, uni-vos!). A visão que a esquerda tem de si mesma e a que a direita tem de si mesma não se justapõem, e por isso esta dicotomia é tão perene e dinâmica — elas discordam até nas suas discordâncias.

Poderíamos continuar. O liberalismo e o libertarismo tendem a ver a sociedade não pelos “muitos” ou pelo “todo”, mas pelo prisma do “cada um”. No libertarismo de direita, como um combate de “cada um contra todos”, travado na arena do mercado; no de esquerda, também conhecido por anarquismo, como uma “federação de cada um com todos os outros”.

Há dezenas de metáforas para simplificar a esquerda e a direita; e logo outras centenas para as complicar. Elas podem servir para muitos, até para todos; às vezes, servem apenas para cada um.

7 thoughts to “Muitos, todos, cada um

  • clovis ultramari

    prezado rui tavares, desculpa utilizar este espaço para contactá-lo, mas todas as tentativas de encontrar seu email foram infrutíferas.

    sou arquiteto, pesquisador brasileiro e tenho pesquisas sobre a temática de acidentes em áreas urbanas.

    gostaria de conversar com vc durante minha curta visita à lisboa na semana de 20 de junho.
    se topar, por favor me envia seu email.
    grande abraço.

  • Luis Pereira de Sousa

    Caro senhor Rui Tavares
    Os meus cumprimentos.
    Sou leitor assíduo das suas crónicas.
    Verifico que, toca, agora, numa questão fundamental para a sociedade portuguesa: a clarificação urgente e necessária dos significados de “direita” e “esquerda”.
    À afirmação estratégica, vulgar e conveniente de que “já não se usa” há que retorquir “pois que se volte a usar”.
    Fomos levados durante décadas de salazarismo, a um anti – comunismo, ou até anti – socialismo, primários, com o objectivo de nos serem vedados ideais que nos orientem para ideais humanistas e sociais, incómodos às elites dominantes.
    Isto, ainda ocorre hoje com evidente eficácia. Com truques de dialéctica, de simulação, de prestidigitação, na Comunicação Social, de selecção, de uma forma sub-reptícia, mas perceptível, a quem ali trabalhou durante muito tempo, pois, a “esquerda “ tem de ser o lado mau, caricato, e anacrónico da democracia.
    É a questão determinante entre nós. Jó assim se justifica que em vésperas de naufrágio, ainda se vota em quem o originou. Maneira aberrante de se assistir a um funeral. Para esta população, mais grave que isto, só um governo de esquerda. E não sabe porquê.

    Há pessoas que votariam à esquerda, mas se lhe perguntarem porque não o fizeram, respondem simplesmente: “porque não”.
    Esta ignorância atávica, semeada paulatinamente pelas nossas TVs, rádios e jornais, é o único garante da continuidade desta elite económica e política, detentora da palavra e do recado dos donos dos órgãos de comunicação e do seu séquito fiel que só assim subsiste.
    Diz – me – à que há pluralismo nos média. Não há.
    Repare; nas trinta e tantas páginas do jornal onde Rui Tavares publica, não mais que uma dá assomos de liberdade de expressão. Entre 20 ou 30 fazedores de opinião, só 1 ou 2 são de “esquerda”, perdido na amálgama de afirmações e insinuações que logo ali desmontam e montam a seu belo prazer.
    A colocação de uma notícia no telejornal, os planos registados e os transmitidos, a apresentação e pós apresentação dessa notícia, a fotografia, a linguagem e a oportunidade, adulteram qualquer hipótese de comunicação honesta e pluralista.
    É por aqui, que os partidos de esquerda, numa “campanha”, verdadeiramente nacional, como serviço publico, cruzada ou movimento de salvação, (porque não?), têm que começar.
    Só assim lograremos uma população livre dos anti – corpos ardilosamente disseminados e cimentados no entender geral.
    Luís Pereira de Sousa

  • Beirão

    O comentário do Sr.Luís Pereira de Sousa é, em si mesmo, o retrato da confunsão que ai vai entre a essência do que realmente é ‘ser-se de esquerda e de direita’. O exemplo que ele dá do jornal Público, por exemplo, a meus olhos é um jornal de esquerda e, ao contrário do que afirma LPS, tanto os conteúdos como os jornalistas e colunistas do dito são maioritariamente de esquerda. É necessário evitar essa patética dualidade: “dos que pensam como eu e a escumalha.

  • João Pinto

    Senhores,
    não sou historiador, político ou politicólogo, nem sequer conheço o contexto que levou os termos de orientação no espaço físico unidimensional a serem utilizados para caracterização de um espaço ideológico.
    O que sei é que as as relações humanas e o que as rodeia não se reduzem a um plano físico unidimensional onde algumas pessoas se procuram colocar.
    Eu não sou de direita, esquerdo centro ou qualquer outro ponto que consigam definir, regulo a minha intervenção por um conjunto de valores que sendo simples se tornam complexos de acordo com o contexto onde são aplicados.
    No contexto do diálogo político o que consigo perceber sobre “direita” e “esquerda” é que são palavras meramente simbólicas utilizadas para defender ou atacar um determinado grupo ou individuo, seja pelas suas ideias, seja pelas suas práticas.
    Recomendo reflexão para abandonarem essa busca pelo posicionamento na simbologia de um espaço.

  • JgMenos

    Seria do maior interesse tratar deste assunto direita/esquerda.
    Tirando os bons sentimentos(todos somos iguais;redistribuir a riqueza; caridade; solidariedade) a gosto de cada um, sobra saber-se quem se apropria da mais valia que pode gerar poupança, logo investimento, logo riqueza.
    A esquerda acredita que o Estado é uma boa solução, a direita diz que é o caminho para a corrupção e o totalitarismo.
    A direita diz que o homem só é verdadeiramente livre se for dono do seu próprio território; a esquerda diz que basta sermos iguais. As igrejas falam de irmandades.Diga mais quem souber ler o autralopiteco envernizado de civilidade …

  • JPAfonso

    Deixem-me inventar uma pequena história sobre qual pode ser a origem da dicotomia esquerda/direita: “no rescaldo de convulsões do reino, o Rei entendeu criar uma assembleia onde estariam presentes as suas cortes de Nobres e Clero, mas também representantes da plebe sublevada; os primeiros sentou à sua direita em reconhecimento do seu suporte. Seriam sempre o seu braço direito, o seu braço forte. Os segundos sentou à esquerda, já não ajoelhados em frente como suplicantes, mas em pé, em reconhecimento da sua força. Ambos os lados responderiam ao centro, o Rei. E este passava a reconhecer que um reino não era completo sem dois braços, o esquerdo e o direito, mesmo que fosse humano reconhecer que há sempre um lado que é mais querido que outro (o Rei não era canhoto)”

    Inventei esta história porque me sai mais económica do que procurar e explicar a resposta correcta. Qualquer que ela seja, palpita-me que não deve estar muito longe disto. Não me vou debruçar sobre quais são as verdadeiras diferenças entre a esquerda e a direita. Acho o seu texto, Rui Tavares, extraordinariamente interessante porque avisa sobre os perigos da subjectividade que é inerente a todas estas avaliações.

    O que queria realçar entretanto é a fortuitidade de toda esta génese inventada. Se o caso tivesse acontecido numa ilha de canhotos e sido exportado para o mundo, hoje à esquerda teria se chamado direita, e vice versa. Mas mais importante ainda é a sua relação com a arquitetura. O rei da minha história precisaria sempre de poder receber os dignitários estrangeiros, teria que haver sempre um porta à sua frente por onde eles entrariam e ficariam de frente para o rei. Isto significa uma clara divisão ao meio das novas cortes, ou estavam de um lado ou no outro, não podiam estar no meio. Da mesma forma, há partidos que se chamam a si próprios de “centro” mas não conheço nenhum que outros reconheçam como tal em democracia. Eles serão sempre direita ou esquerda, centro-direita ou centro-esquerda, extrema-direita ou extrema-esquerda (mas talvez esteja errado, basta apresentarem-me um exemplo que invalide esta noção). Vejo uma razão muito simples para que isso não aconteça: se um fosse reconhecido como centro, estaria na prática a ser reconhecido como o Rei, aquele que governaria sempre, uma perversidade em democracia… é o poder da simbologia em acção.

    Esta divagação não estaria completa sem uma visita aos diferentes formatos dos parlamentos. Há aqueles como o Inglês, parecido com o que eu descrevi, rectangular e comprido (por sinal uma monarquia ainda); como o nosso, um arco voltado para a face da republica; tipo cinema onde todos olham para a frente; e múltiplas variações. Na “Guerra das Estrelas”, o parlamento são as paredes de uma esfera voltada para o seu centro. Até que ponto a arquitectura dos mesmos moldam a arquitectura mental dos que vivem com eles? Até que ponto ela é escolhida de propósito para moldar o formato das ideias governativas e a sua agregação em grupos de interesses? Até que ponto são denuncias de outros ciclos no passado que se quer evitar?

    É minha convicção que estas perguntas são importantes, porque pode acontecer que os problemas da nossa democracia derivem de uma progressiva inadequação das arquitecturas actuais à sociedade moderna. Há estudos recentes que parecem mostrar que na construcção e desagregação de grupos sociais, mais do que a hostilidade de membros dominantes de um grupo em relação aos seus marginais, concorre mecanismos de auto-exclusão da parte destes. Quem não se sente bem, muda-se. A primeira pergunta a que um partido novo eleito para o parlamento tem que responder seria, onde se quer situar, à esquerda ou à direita? Onde é que se sente mais à vontade? Se o partido amigo dos animais tivesse ganho um deputado, onde é que ele se teria sentado?

    Mas e se a uni-dimensionalidade da escolha (esquerda/direita) for mais restrita do que certos grupos podem suportar? Os abstencionistas são preguiçosos, ou estão simplesmente a auto-excluirem-se?

    Talvez seja tempo de pensarmos numa arquitectura diferente. Talvez seja tempo de fecharmos completamente o arco tornando-o num anel, e retirarmos todos os elementos que pudessem destruir a sua simetria circular. Isto envolveria desistirmos de certos elementos que tomamos por garantidos como presidentes e vice-presidentes dos parlamentos, porque ao sacraliza-los, construimos um ponto zero cujas direcções preferenciais destroem a simetria. Provavelmente teríamos que os substituir por um tipo de “testemunho” electrônico, que assegurasse quem teria a palavra. Conceitos de peer-to-peer, de arquitecturas descentralizadas, também afloram na minha mente. Mais complicado seria a recepção de visitantes. O lugar óbvio seria o centro mas este não poderia ter estructuras fixas que violassem a simetria. Vou deixar este problema em aberto para sugestões.

    Parece demasiado trabalho e complicações para resolver… que problema? Para destruir a divisão direita/esquerda que há hoje, é claro.

  • Betsey

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