As nossas vontades e os nossos fados tão contrários são, que por terra deitam todo o nosso engenho. Os nossos pensamentos são nossos; os fins deles já nada têm connosco.


Michel de Montaigne (1533 - 1592)

Após treze anos de Parlamento na segunda metade do século XVI, Montaigne abandonou a cidade de Bordéus e instalou-se no campo para esperar pelo seu próprio fim. Tinha aprendido com os antigos que “filosofar é aprender a morrer”. Mas, pensando melhor agora que tinha tempo, aprender a morrer é um empenhamento fútil – com ou sem aprendizagem, o momento chega. Montaigne chegou então a outra pergunta.

Tenho lido nos últimos tempos um livro sobre Montaigne por uma autora inglesa chamada Sarah Bakewell. Todos os seus vinte capítulos são tentativas de resposta à pergunta que Montaigne encontrou na filosofia antiga (e já ficando fora de moda face a uma filosofia mais abstrata) e a que se dedicou então – Como Viver?

P: Como viver? R: Não penses na morte.

P: Como viver? R: Presta atenção.

P: Como viver? R: Nascendo.

P: Como viver? R: Lê muito, esquece a maior parte, sê lento de raciocínio.

P: Como viver? R: Sobrevive ao amor e à perda.

P: Como viver? R: Faz uso de pequenas manhas.

P: Como viver? R: Questiona tudo.

P: Como viver? R: Mantém um quarto só para ti.

P: Como viver? R: Vive com os outros.

P: Como viver? R: Desperta do sono do hábito.

P: Como viver? R: Com temperança.

P: Como viver? R: Preserva a tua humanidade.

P: Como viver? R: Faz algo que não foi feito antes.

P: Como viver? R: Vai ver o mundo.

P: Como viver? R: Faz um bom trabalho, mas não demasiado bom.

P: Como viver? R: Filosofa apenas por acaso.

P: Como viver? R: Reflete sobre tudo, não te arrependas de nada.

P: Como viver? R: Abandona.

P: Como viver? R: Sê comum e imperfeito.

P: Como viver? R: Deixa que a vida seja a sua própria resposta.

Roubei as respostas a Sarah Bakewell, que as roubou a Montaigne. Montaigne roubou principalmente ao greco-romano Plutarco, por vezes sob a forma de histórias intrigantes. (Ou às vezes apenas inconvenientes. Para explicar como devemos tirar sempre o melhor de cada situação, Plutarco conta – e Montaigne repete – a história do homem que tentou atirar uma pedra a um cão e em vez disso acertou na sua sogra, exclamando depois: “Olha, afinal não foi tão mau quanto isso!”)

Montaigne foi por sua vez pilhado por Shakespeare, como identificaram muitos autores.ATempestade de Shakespeare rouba o ensaio Dos Canibais de Montaigne e o discurso de Hamlet –

“As nossas vontades e os nossos fados tão contrários são, que por terra deitam todo o nosso engenho. Os nossos pensamentos são nossos; os fins deles já nada têm connosco.”

– reverbera ecos de Montaigne (segundo um tal de John M. Robertson, que sobre ambos escreveu em 1897).

Montaigne é às vezes muito familiar. Encontro nele referências a André de Gouveia, o humanista português que foi reitor do colégio de Bordéus onde Montaigne estudou. O irmão de André, Diogo de Gouveia (e “grande reacionário”, como lhe chamou Lucien Febvre) foi reitor da Sorbonne aos 25 anos e nasceu na minha aldeia, onde escrevo estas linhas. Após Diogo de Gouveia, nenhum letrado da Arrifana poderá desejar mais do que ser o segundo melhor da aldeia. O que é muito montaignesco, penso eu, enquanto olho para a serra do Montejunto tão indiferente.

É aprazível. Mas passado um pouco vejo que Montaigne também sabe ser cruel, como quando escreve que “as pessoas não deveriam estar unidas nem coladas de tal forma que não possam ser separadas sem arrancar a pele e alguns pedaços de carne também”.

One thought to “Montaigne”

  • Ana Luísa

    … Tão bonito…
    … Mas triste… com um final triste, como quando um amor se esfuma sem que consigamos compreender porquê…

    Também gosto muito de Montaigne, sobretudo da modéstia do seu pensamento, da anarquia do seu método e da jovialidade do seu estilo…

    Depois da melancolia inspiradora deste texto, li em férias, pela primeira vez, o “Montaigne” de Stefan Zweig (na tradução francesa da PUF).

    Montaigne poderia ter inspirado este autor a, no seu exílio brasileiro, “preservar a incorruptível clareza de espírito perante todas as ameaças e perigos do frenesim sectário”. (p. 23, tradução minha).

    Escrevendo num “tempo”, – o do Holocausto – que lhe recordava o contexto histórico de Montaigne, – o da barbárie das guerras religiosas – Stefan Zweig sentiu-se, contudo, incapaz de aplicar a receita montaignesca para manter a sua “humanité du coeur por entre a bestialidade” do nazismo. Em vez de continuar “igual a si próprio”, – era esta a simples panaceia preconizada por Montaigne – ou, noutra interpretação, talvez fazendo-o, acabaria por se suicidar, juntamente com a sua companheira, receando contaminar o mundo com a sua dor e amargura.

    Mas haveria outra forma mais simples e, sobretudo, mais benfazeja de suportar os “males do mundo”. Na “Tempestade” – para a qual eu não sabia que Shakespeare havia pilhado Montaigne – pode encontrar-se outra solução…A vingança de Próspero é o perdão, planície sólida e serena sobre a qual florescerá o amor de Miranda, sua bem-amada filha.

    Se quisermos deixar a prosa sonhadora e voltar a assuntos recentes do governo do mundo, basta que relembremos o recente indulto presidencial de Xanana Gusmão aos seus virtuais assassinos e o potencial de reconciliação que encerra.

    Senão, podemos sempre buscar, num exercício de longínqua reminiscência, a hora em que contracenámos com Próspero e dele bebemos a sabedoria…

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