|Do arquivo Público 19.07.2017|

Era hoje minha intenção escrever sobre Aristides de Sousa Mendes, que nasceu neste dia em 1885, e defender que as portas do Panteão Nacional se abram para quem, ao desobedecer à hierarquia do estado para auxiliar a fuga de milhares de refugiados maioritariamente judeus durante a IIª Guerra Mundial, não pode deixar de ser um dos portugueses mais importantes da história. Como é sabido, a ditadura puniu Aristides pela sua coragem, e mesmo a democracia foi lenta a desmontar as ridículas objeções que iam impedindo que justiça lhe fosse feita, ao menos postumamente. Foi só em abril deste ano que Aristides foi agraciado com a Ordem da Liberdade. Dar-lhe honras de Panteão tornará bem claro que, para o Portugal democrático, a desobediência corajosa de Aristides é um exemplo que nos norteia.

Era sobre isto que eu vinha aqui escrever. Não tenho dúvidas de que é nossa obrigação moral e política dar-lhe o Panteão. Aquilo de que eu duvido é se é mesmo verdade que o seu exemplo nos norteia. Para isso seria necessário que, ao menos entre a classe política, entre os representantes do povo, e entre as lideranças dos maiores partidos portugueses, fossem absolutamente consensuais os valores dos direitos humanos. Seria necessário que, entre essa classe política, não fosse deixado espaço à mínima dúvida de que o racismo no discurso público é sempre intolerável. Seria necessário que, nos atos banais do preconceito no quotidiano, houvesse vontade política de mostrar o que significa “ter aprendido com a história”. Seria necessário que tudo isto fosse evidente, para lá de esquerda ou de direita, para lá de conveniências políticas do momento, e certamente para lá da maneira como encaramos os debates sobre o que é (ou não é) o politicamente correto. Infelizmente, nada disto é ainda garantido em Portugal, nem consensual entre a nossa elite política, nem dado por adquirido no debate público.

Reparem; não estou a falar das caixas de comentários na internet, nem da existência de partidos xenófobos, nem da ocorrência aqui ou acolá do candidato a político que não está ainda consciente das suas obrigações cívicas. Estou a falar das lideranças políticas que têm obrigação de demonstrar saber qual é a fronteira entre o aceitável e o inaceitável.

Ora, o caso do candidato à câmara de Loures que decidiu auto-promover-se usando do mais reles racismo anti-cigano demonstra-nos que há em Portugal pelo menos um partido que ainda não está à altura. Trata-se do PSD, que à hora a que escrevo ainda mantém a confiança política nesse candidato (o CDS decidiu, um pouco tarde mas muito bem, demarcar-se daquele que era também seu candidato). Não só Pedro Passos Coelho se esquivou da sua obrigação de agir, como não se vê no PSD qualquer levantamento de hostes, nem adversários internos em pé de guerra, nem militantes a entregarem cartões — nada. Como o preconceito contra a comunidade cigana é forte, e como as eleições estão aí à porta, o partido tenta escapar entre os pingos da chuva a ver se a borrasca passa.

E, confesso, foi isso que me desanimou de escrever sobre Aristides. Sim, um dia o parlamento votará a sua chegada ao Panteão, quase aposto que por unanimidade. Far-se-ão belos discursos sobre direitos humanos (o PSD também). Felizmente que Aristides é hoje consensual. Mais felizmente ainda que o monstro do anti-semitismo é hoje incomparavelmente mais fraco do que foi no tempo de Aristides. Mas quando se trata do preconceito anti-cigano, que ainda é geral, qualquer conveniência política é suficiente para deixar quieto quem teria obrigação de agir. E não estamos a falar de um partido qualquer. Estamos a falar do maior partido de oposição em Portugal.

É claro, pois, que Aristides merece o Panteão. Resta saber quando a nossa classe política se revelará merecedora de dar o Panteão a Aristides. Pelos vistos, ainda não foi no 132º aniversário do seu nascimento.

(Crónica publicada no jornal Público em 19 de Julho de 2017)

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