Aqui temos principalmente uma memória colectiva fortíssima de uma catástrofe antiga que se poderá repetir, ou não, durante as nossas vidas. Essa memória não se apagou, nem apaga, mas não se converte em hábitos.
Quando publiquei o “Pequeno Livro do Grande Terramoto”, recebi uma mensagem de uma portuguesa emigrada numa cidade japonesa, onde estudava a língua e literatura daquele país. Contava-me ela que, tal como os seus vizinhos japoneses, se habituara a ter sempre uma mala feita com os objectos essenciais e roupa escolhida de prontidão para o caso de haver um sismo durante a noite. Quando saía pela manhã tinha um especial cuidado em fechar a canalização do gás, para evitar explosões no caso de haver um sismo quando estava fora de casa. Ao fazê-lo, salvava vidas.
Perguntava-me ela por que razão, sendo Lisboa a cidade de 1755, os portugueses não tinham o mesmo tipo de cuidados. A resposta que então lhe dei — e que tinha dado no livro — é que a nossa sismicidade (no continente) é traiçoeira. Uma região com sismos frequentes, como o Japão ou os Açores, tem uma relação diferente com o fenómeno. Aqui temos principalmente uma memória colectiva fortíssima de uma catástrofe antiga que se poderá repetir, ou não, durante as nossas vidas. Essa memória não se apagou, nem apaga, mas não se converte em hábitos.
Isto é potencialmente muito perigoso. As desvantagens relativas da nossa situação têm de ser compensadas “politicamente”, ou seja, através da comunidade organizada. Não é por acaso que um sismo muito forte no Japão causa muito menos mortes do que um sismo menos forte no Afeganistão. O Japão está preparado, o Afeganistão não.
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Nessa mesma altura fui convidado para vários debates sobre 1755 e estava lá apenas enquanto alguém que estuda o caso do ponto de vista da história cultural. Costumava ir também um sismólogo ou geofísico, alguém da protecção civil, ou um engenheiro especialista no nossos edifícios.
Em geral, o que eu ouvia dos meus parceiros de debate deixava-me só moderamente preocupado, o que significa também “moderadamente confiante”. Mas o que eu ouvia sobre o nosso “parque edificado” (para usar o palavrão técnico) deixava-me mesmo muito preocupado. O engenheiro João Appleton, especialista em edifícios antigos, era veemente nos seus alertas. Segundo ele, a má construção e a má recuperação de edifícios são endémicas no nosso país, e particularmente em Lisboa.
Esse problema de base, já de si alarmante, é agravado pela falta de informação. Se eu for comprar ou alugar uma casa, para onde devo olhar ou que devo procurar? Não sei. Que podemos fazer nós, que não somos engenheiros civis? Devemos apenas confiar nos regulamentos e esperar que eles sejam respeitados, ou há algo mais que possamos acrescentar?
Uma resposta possível poderia estar naquilo a que se chama certificação — e que eu entendo como uma modalidade do “desenho de informação”. Tal como existe agora a certificação energética de edifícios, que atribui notas ao consumo de cada prédio, deveria haver uma certificação anti-sísmica simples e pública. Os edifícios seriam visitados por técnicos antes de serem postos no mercado e nós, leigos, poderíamos saber quais são as classificações para cada prédio.
É uma ideia. Como vimos esta semana em Itália, não é preciso um novo 1755 para causar mortes evitáveis. É com ambivalência — por receio de ser alarmista — que se usa a desgraça de outros para falar de nós. Mas estou certo que os meus ex-parceiros de debate concordariam que é melhor ficar mais preocupado agora e mais seguro depois.
[do Público]