Foto: Reuters

|Do arquivo Público 10.07.2017| O que chamar às peças de Shakespeare que não são comédias nem tragédias? Os dois primeiros géneros são fáceis de distinguir. Nas comédias tudo corre bem, ninguém morre, os jovens apaixonados vivem felizes para sempre e o espectador entretém-se mesmo que não aprenda nada. Nas tragédias as coisas correm mal logo de início, morre muita gente pelo caminho e o espectador leva uma lição para casa.

Mas Shakespeare escreveu um terceiro tipo de peças que não cabem facilmente numa, nem na outra, categoria, e a que ele próprio não chamou uma coisa nem a outra. Nestas peças o espectador é confrontado com um dilema — por exemplo, a questão de saber “se é melhor ser temido do que ser amado, e se o que parece é”, como diz o Duque de Viena em Medida por Medida — e o desenrolar da peça apresenta uma série de possibilidades de resposta à pergunta inicial. O espectador não vai para casa entretido nem ensinado, mas com perguntas na cabeça. Colocados perante o problema de saber o que chamar às peças de Shakespeare que não são comédias nem tragédias, os especialistas do autor ficaram por isso mesmo: optaram por chamar-lhes “as peças-problema”.

Consideremos, por exemplo, o resultado da reunião entre Trump e Putin na cimeira do G20, tal como relatado pelo próprio presidente dos EUA. Os dois líderes passaram uma hora e meia fechados numa sala, com poucas testemunhas de ambos os lados, e Trump decidiu ontem, numa série de tweets confusos, explicar que pressionou Putin com vigor para que este lhe dissesse se tinha interferido nas eleições norte-americanas em que Donald Trump derrotou Hillary Clinton. Segundo Trump, Putin negou “com veemência” essas suspeitas e acusações, com o que Trump concordou. Ato contínuo, os dois líderes concordaram em constituir uma “Unidade Impenetrável de Cibersegurança” para evitar que voltasse a ocorrer aquilo que um deles tinha negado e outro concordado que nunca tinha ocorrido.

Ora bem, isto é uma comédia ou uma tragédia? À primeira vista, não pode deixar de ser uma comédia. E mais; é uma boa comédia.

“Meu caro senhor, tenho de perguntar a Vossa Excelência se Vossa Excelência roubou a minha carteira!”. “Meu querido amigo, que pergunta!” — e aqui o dramaturgo deixaria entre parêntesis uma indicação do género: “(pisca o olho ao público enquanto põe a carteira no bolso de trás da casaca)” — “é evidente que nunca lhe roubaria qualquer carteira”. “Então de acordo! Não quer Vossa Excelência ajudar-me a investigar quem me roubou a carteira?”. “Caríssimo amigo, irei mesmo mais longe: proponho-lhe constituirmos uma Unidade Impenetrável para a Investigação dos Assaltos a Carteiras”. E por aí adiante.

Por outro lado, isto é bem capaz de não ser assim tão divertido. Enquanto EUA e Rússia falam sobre Unidades Impenetráveis — uma escolha de termos que Freud saberia bem analisar — há uma série de outros países que não podem deixar de se perguntar sobre a sua própria cibersegurança. O que acontece se Rússia e EUA começam a colaborar, em vez de rivalizar, nos seus objetivos de espionagem e ciberinterferência? É a própria autonomia da internet que está em jogo, para não falar de toda a infraestrutura de dados, em particular na União Europeia, que tem dependências acentuadas em relação aos EUA. É capaz de não chegar para desembocar em tragédia, mas não deixa de ser uma séria vulnerabilidade para a economia e para as sociedades europeias.

De um lado, temos um aliado boçal e incompetente; do outro, um adversário audaz e implacável. Não adianta portanto escolher um ou outro, mas antes saber como podemos organizar-nos para não depender de qualquer dos dois. Trata-se, portanto, de uma peça-problema. Pois bem, são as mais interessantes.

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